Saí de casa e fui caçar

Saí de casa e fui caçar.

Era madrugada, pelo que considerei que a hipótese de ter outros predadores por perto seria menor. Armei-me com luvas, máscara, chapéu, óculos e álcool e coloquei o pé fora da porta.

Porém, mal o fiz, já a minha vizinha me chamava da janela. Encarecidamente, pediu-me que lhe trouxesse umas coisinhas, já que ia às compras. Tive de assentir, percebendo agora a razão da velhaca, que nem sequer está no grupo de risco, me ter oferecido limões na semana passada.

De modo que não tive alternativa a não ser dizer-lhe que me enviasse a lista para o telemóvel.

Mal cheguei ao local avistei apenas outros quatro caçadores e animei-me com a perspetiva de a manhã decorrer tranquila.

Contudo, sorrateiramente, posicionaram-se atrás de mim, matreiros e expectantes, outros dez caçadores ávidos de presas. Para piorar o cenário, recebi a lista de compras da vizinha.

Não eram umas comprinhas, era um tratado de bens que me obrigaria de revirar todas as prateleiras, marca por marca.

Respirei profundamente, tentando memorizar as necessidades que me levavam ali e aguardei pacientemente a abertura de portas, a 3 metros de distância do caçador da minha frente. Na minha imaginação, a coisa resolver-se-ia desde que eu organizasse o percurso sem recuos ou detenças.

Abriram-se, então, as portas e seguimos ordeiramente.

Primeira secção: frutas e legumes. Atiro nas maçãs, pêras, perscruto as mangas encomendadas pela vizinha e eis, então, que um desgraçado se cola a mim para revirar as laranjas uma por uma. Dou um salto para trás com o susto da excessiva proximidade e reposiciono-me na zona das batatas.

Respiro fundo, mantenho-o debaixo de olho, e volto a disparar nas cebolas que caiem certeiramente no meu carrinho.

Inexplicavelmente, uma mulherzinha cola-se em perigosa proximidade ao meu corpo, raios parta isto, nem tem máscara, nem luvas, nem o diabo, sinto-lhe o bafo a menos de um metro, vai dar-me uma síncope cardíaca!

Ai deus do céu, se me fino nos legumes já não chego aos congelados…

Arranco dali disparada com o carrinho, perscrutando os intervalos dos transeuntes para passar incólume, como se isto fosse uma corrida de obstáculos.

E é, porque mal chego aos iogurtes, deparo com um casal entretido a lamber rótulos e a discutir animadamente qual a marca que deve levar. Agarro velozmente os primeiros que o meu olhar alcança e sinto o suor a escorrer fininho pela testa.

Prossigo para as bolachas, a cabrona da vizinha quer umas de chocolate branco da marca “Cupita”. Perscruto à esquerda e à direita das prateleiras: uma selva de bolachas, é o que isto é. Há bolachas da marca branca, marca azul, com pepitas, sem pepitas, com recheio duplo e duplicado, bolachas roscas e bolachas espalmadas. Há tudo, tudo, menos as p#€@s das bolachas da marca “Cupita”.

Aproxima-se um repositor, dou três passos para trás, vai de retro que nem máscara, nem luvas, tens sorte ó desgraçado que és chavalo e de ti não quer o Coronavirus saber. Grito-lhe da outra ponta do corredor se me sabe dizer onde encontro as “Cupitas”. Aponta com um dedo simpático e arranco a toda a brida para as agarrar numa penada, antes que chegue o senhor obeso que tem ar de quem vai açambarcar a prateleira toda.

Sigo para o leite, agarro numa embalagem e perscruto a vizinhança. Está livre, posso passar, avanço para as bebidas alcoólicas. Na lista da outra estão três garrafas de vinho do Douro. Três garrafas de vinho do Douro! Não pode ser alentejano, nem ribatejano, é fina na pinga que toma, a desgraçada. Nova selva de garrafas. Vejo tudo menos o Douro.

Da esquerda, aproxima-se uma mulherzita a tossir. Ainda vem longe, dá tempo de encontrar o Douro, o meu olhar saltita, mas o suor abunda e, agora, fiquei com os óculos todos embaciados. Não vejo nem o norte, nem o sul, apenas um vulto que se acerca a tossir. A tossir, mãe do céu!!!! O Coronavírus a andar sobre pernas, meu Deus, vou morrer aqui e agora toda contaminadinha, é agora que vou encomendar as minhas últimas preces.

Agarro uma garrafa qualquer, álcool é álcool, a p#€@ da vizinha nem sequer pode reclamar que eu estou a arriscar a minha vida nesta caçada, e atiro-a com vigor e de forma certeira no carrinho, acelero, o carro desliza.

Está tudo bem, estamos bem, a gaja que tosse ficou nas minhas costas, tiro os óculos para os desembaciar.

Carago, acabei de mexer na cara.

Acabei de mexer na cara.

ACABEI DE MEXER NA CARA!!!!!!

Perscruto no bolso a micro embalagem de álcool que me há de salvar a vida, besunto as lentes, besunto as luvas… f#€@-se!! A embalagem escorregou-me para o chão: eclipsou-se debaixo da última prateleira. Corro desalmadamente para os produtos de higiene, vasculho o álcool, onde está o álcool? Agarro na última garrafa com vida, despejo-a em cima de mim, mais valia imolar-me aqui e agora, p#€& que pariu esta m#€&@ toda!!!!

Regresso ao carrinho, conduzo-o velozmente para a caixa de pagamento, consigo miraculosamente ficar numa fila veloz, e atiro energeticamente toda a caça para o tapete rolante.

Olho em redor, todos aqueles rostos, com e sem máscara, com e sem luvas, um deles, um deles vai estragar esta gaita toda, um deles, vai tocar, vai tossir, vai conspurcar isto tudo… Benzo-me com mais um pouco de álcool, a menina da caixa sorri, até me enerva com tanta simpatia, esfrega álcool à sua volta como se se estivesse a embrulhar numa bolha e eu fujo dali para fora à velocidade máxima com o carrinho a abarrotar de nervosismo.

Mais álcool no puxador do carro, toca a despejar tudo lá para dentro, sento-me quietinha ao volante, respiro fundo. Lentamente recupero a tranquilidade, cheguei inteira, o vírus ficou do lado de fora, se entrou já o suei em pinga.

É, então, que começo a descalçar as luvas e, estupefacta, reparo: tenho um rasgão na luva direita.

TENHO UM RASGÃO NA LUVA DIREITA!!!!!

Despejo mais álcool nas mãos, meto álcool na embalagem de álcool que também deve estar contaminada, mais álcool outra vez no volante que deve estar contaminado, mais álcool no banco porque a roupa está contaminada, mais álcool nas calças porque toquei com as mãos que tinham luvas rasgadas nas calças, mais álcool… . Não pode ser… acabou-se a embalagem. Caraças, pá!! Que chumbada! Saí de casa, fui caçar e esqueci-me de encher a caçadeira??????

Nota – o presente texto, de caráter irónico não pretende iludir a gravidade dos acontecimentos que vivemos presentemente. Acima de tudo, deseja que o leitor adquira consciência e não saia de casa apenas por um pacote de batatas fritas, avaliando os bens que são supérfluos ou de primeira necessidade.

Fica, igualmente, aqui o profundo agradecimento aos funcionários deste e de todos os serviços que asseguram o nosso bem-estar no presente momento.

Link permanente para este artigo: https://www.arlindovsky.net/2020/03/sai-de-casa-e-fui-cacar/

12 comentários

Passar directamente para o formulário dos comentários,

    • maria on 22 de Março de 2020 at 19:26
    • Responder

    O meu mais profundo agradecimento. Desde que tudo isto começou foi a primeira vez que me ri, mesmo a sério!

    • Liz on 22 de Março de 2020 at 20:13
    • Responder

    Obrigada por este momento hilariante… há já algum tempo que não me ria tanto, quase me revi nesta aventura 😁

    • Luluzinha on 22 de Março de 2020 at 20:38
    • Responder

    Sobre o texto, muito honestamente: nem interessante nem humorístico!

      • Manue on 22 de Março de 2020 at 21:17
      • Responder

      Não consigo concordar consigo. Achei esse texto o máximo!!! Poucos escreveriam melhor e com tanto humor, de forma a alertar todos para terem cuidado mantendo a devida distância e a calma necessária para lidarmos com esta situação .

    • Carlos Bico on 22 de Março de 2020 at 21:08
    • Responder

    Serviu para rir e ficar um pouco mais bem disposto. Temos que ter calma. Se todos tivermos a cabeça no sitio e sermos responsáveis, vamos conseguir ganhar esta batalha.

    • Dina on 22 de Março de 2020 at 21:45
    • Responder

    Gostei e fartei-me de rir… é que precisamos de Alguma coisa que nos distraia… obrigada!

    • KartuxaMaria on 22 de Março de 2020 at 22:28
    • Responder

    Terapia da Alma! Muito obrigada!

    • Maria on 22 de Março de 2020 at 22:49
    • Responder

    A personagem da história podia ser eu … as idas ao supermercado são autênticos atentados à minha sanidade mental … hoje dei por mim a lavar moedas , desinfectar as solas dos sapatos e tenho uma nota de 5€ a secar .. estou a ficar sem álcool … e quase sem pele nas mãos 😫


  1. Fascinante!

    • Cardoso on 23 de Março de 2020 at 0:41
    • Responder

    O texto muito bom mesmo. É a realidade do que esra acontecer. Mas com isto tudo uns seguem a risca e outros vao apanhar sol para o passadiço, quando mandarem toda a gente para casa de obriga ai é que vao chorar. Por uns pagam outros. Nao tem respeito por ninguem nem pela familia deles….

    • Alice Vieira on 23 de Março de 2020 at 8:57
    • Responder

    Está realmente hilariante! Parabéns ao autor.😂😂😂

    • Matilde on 23 de Março de 2020 at 12:01
    • Responder

    A boa disposição nunca fez mal a ninguém!

    E se pudermos rir em vez de chorar, tanto melhor… Além do mais o “cinzentismo”, por norma, não costuma ajudar a resolver problemas, apenas os agrava…

    E não é por rirmos que estamos menos conscientes do que temos pela frente. Conseguir “rir da desgraça”, ajuda a aliviar a tensão e a ansiedade que a mesma provoca, o que não deixa de ser uma boa estratégia de “sobrevivência”…

    Haja quem nos faça rir, mas, por favor, que não seja o senhor ministro da educação… E isto não significa que não seja desejável ter um ministro bem humorado, pelo contrário.

    O pior que pode acontecer a um governante é causar nos seus concidadãos a sensação de “pena” e/ou considerá-lo uma espécie de personagem de uma rábula non sense…

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

WP2Social Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Seguir

Recebe os novos artigos no teu email

Junta-te a outros seguidores: