A versão 2.0 do ensino remoto de emergência

Sempre defendi que o que fizemos no 3.º período do ano transato nada tinha a ver com ensino a distância, mas sim com ensino remoto de emergência. O que constato, agora, é que, embora, insistam na denominação, a situação mantém-se, continuamos a “exercer” ensino remoto de emergência.

 

“Não existirá ensino à distância, mas a versão 2.0 do ensino remoto de emergência”

ais de dois milhões de alunos regressam, amanhã, ao ensino à distância, quase um ano depois da primeira “experiência” desta nova realidade de aprendizagem. Desde então, milhares de professores apostaram em formação e foram utilizando essas novas ferramentas em sala de aula “para que a transição para um novo período de e@d se fizesse de forma mais tranquila”.

Cátia Valente, professora de Espanhol do 3.º Ciclo no Agrupamento de Escolas do Castêlo da Maia, já perdeu a conta às formações que fez, “umas gratuitas e outras pagas”, e acredita estar agora “muito mais preparada e capaz de dar aulas à distância”. “Nunca fiz tanta formação como agora para o uso de plataformas e metodologias que não conhecia, mas também para potenciar as que já utilizava”, explica. Para a docente, a diferença entre a aula presencial e à distância não difere apenas no facto de o professor não estar fisicamente com os alunos. “Uma boa aula à distância não pode ser igual à presencial, porque os níveis de concentração não são comparáveis. O professor tem de recorrer a recursos diferenciados e mais atrativos. Devemos variar as estratégias de forma a fomentar a autonomia do aluno”, sublinha. A professora de Espanhol não esquece, também, o papel fulcral do docente no bem-estar emocional dos alunos. “É importante que os alunos sintam que o professor está lá e que se preocupa com o estado emocional deles”, conclui.

Marco Bento, investigador da Universidade do Minho, e especialistas em e@d também refere ao DN que os professores estão agora mais preparados para o desafio, contudo, teme que alguns erros cometidos em março do ano passado não sejam corrigidos. “A minha perspetiva é que não existirá ensino à distância, uma vez mais, mas a versão 2.0 do ensino remoto de emergência. Nesse caso, os professores dominam melhor a tecnologia, o que os pode tornar mais ágeis, mas a questão de fundo permanece inalterável, ou seja, o conhecimento de práticas pedagógicas, que mais do que ativas possam ser interativas com os alunos. Não posso deixar de referir, que temo que a versão 2.0 não seja mais do que um upgrade substancial, porque grande parte dos planos de ensino remoto de emergência dos agrupamentos continuam a ser pautados por cronogramas e horários muito similares ao presencial, antevejo a continuidade da replicação, ou digitalização, de um ensino presencial”, explica.

José António Moreira, docente da Universidade Aberta, deu formação a milhares de docentes nos últimos meses e partilha da opinião de Marco Bento. Para o especialista, “não basta ligar o PC e não podemos passar essa má imagem”. Há uma série de equívocos quando se fala em e@d. O que está a acontecer não é ensino a distância, mas sim remoto o digitalizado. Há uma transferência da realidade das práticas da escola física para a ligação de uma câmara. Nada contra isto, mas isto não é o que preconizamos nos modelos de educação à distância. Uma boa aula tem uma série de condições obrigatórias na geografia virtual. Usa-se o termo e@d sem o estar a implementar. Não houve ajustamento do e@d, mas uma transferência online”, defende.

Replicar os horários presenciais é um erro

Marco Bento explica ao DN a dinâmica de uma e@d, devendo esta ter “pelo menos três componentes: síncrono, assíncrono e trabalho autónomo, que devem ser combinados de forma a promover sempre o objetivo final da escola, ou seja, a aprendizagem dos alunos”. “Não havendo um tempo ideal, deverá existir muito bom senso, consoante o tempo de atenção sustentada de cada aluno”, explica (ver tabela Illinois State Board of Education). Para o especialista, “é fácil perceber que as escolas não deveriam replicar os horários presenciais nos 100% de horários síncronos, uma vez que a preocupação em preencher o tempo letivo não está de acordo com a real capacidade de atenção dos alunos, que é bastante reduzida, para não falar no imenso esforço e fadiga gerada por um ambiente online constante, que nem um adulto consegue sustentar”. “Dependendo das idades, a aula síncrona, por videoconferência, poderá ir de 20 a 50 minutos. Quando pensamos no conjunto dos blocos semanais, por exemplo, três blocos de 50 minutos, neste modelo online poderia ser de um bloco síncrono e dois blocos assíncronos” sublinha.

José António Moreira salienta também a existência de autonomia por ciclos de ensino com diferenças claras. “É óbvio que a autonomia por ciclos é diferente. Tem de haver momentos de trabalho autónomo, mas se os alunos não têm essa autonomia desenvolvida, só pode fazer-se com comunicação regular. Quanto mais baixas forem as faixas etárias, maior a necessidade da presença digital constante”, diz. O especialista vai mais longe e afirma que “a educação à distância não deveria ser feita nos 1.º e 2.º ciclos”. “Não é possível eliminá-la por estar a viver uma situação de emergência, mas temos de perceber de que forma podemos minorar os problemas”, frisa. José António Moreira acredita também num “futuro a curto prazo que passará pelo ambiente híbrido”.

“A introdução de ambientes virtuais na sala de aula vai ser uma realidade, não tenho dúvidas. O plano de educação digital da União Europeia fala nisso mesmo, na articulação entre ambientes virtuais e físicos. A presencialidade pode existir no digital”, explica, referindo-se ao que entende como educação em ambiente digital. “O que temos imaginado da sala de aula física terá mais ambientes virtuais, que são construídos para simular as aulas físicas. Não é a substituição de uma por outra, mas uma articulação, uma complementaridade, entre as duas. Os alunos poderem complementar a aprendizagem em casa. Este é o futuro”, conclui.

As dificuldades que os professores enfrentam

Elisabete Ferro, educadora de infância, confessa estar a sentir muitas dificuldades no e@d do pré-escolar. “Esta nova realidade está a custar-me muito porque o pré-escolar à distância é impraticável. Temos um horário de sessões de aulas síncronas e assíncronas. Duas horas por dia síncronas e as outras assíncronas. Estar duas horas com crianças da pré em e@d é impensável. Uma criança não consegue concentração mais de 20 minutos, nem presencialmente.” A educadora vai implementar “atividades muito simples e com materiais que os pais têm em casa”. “O objetivo é não perderem o contacto connosco”, conclui, confessando querer voltar ao trabalho presencial “o mais rapidamente possível, pois é a única forma eficaz de trabalhar com crianças tão pequenas”.

Daniel Ribeiro, professor de Física e Química no Colégio Júlio Dinis, no Porto, enfrenta outro tipo de desafios. O docente leciona o ensino secundário, em que as dificuldades passam pelas características práticas da disciplina. “A primeira grande dificuldade que as disciplinas inerentemente científicas sentem prende-se fundamentalmente com a natureza experimental das mesmas. A Física e a Química, por exemplo, são ciências puras que vivem da experimentação. Os alunos ficam com uma ideia muito mais clara dos conceitos quando são eles a trabalhar um protocolo experimental que lhes permita induzir um resultado científico. Neste aspeto, nada substitui a abordagem hands-on, em detrimento da abordagem eyes-on naturalmente preconizada pelo e@d” explica.

O docente relembra também dificuldades na “manipulação da calculadora gráfica em ensino remoto”. Numa sessão síncrona de atividade experimental com utilização da calculadora gráfica, grande parte do tempo é perdido a tentar encontrar a razão para um qualquer erro que o aluno está a cometer na sua calculadora”, refere, salientando que, “nesse aspeto, todo o trabalho feito em e@d assume uma dificuldade incalculavelmente superior”.

Escolas ajustaram horários e metodologias

Escolas do setor público e privado alteraram alguns dos procedimentos implementados em março do ano passado. Confessando estar agora mais preparado, João Trigo, diretor do Colégio Efanor, em Matosinhos, explica que não teve de fazer “alterações de fundo”, auxiliando-se da experiência anterior em e@d. “Não tivemos muita necessidade de fazer ajustes. Adquirimos PC com ecrãs touch, generalizámos o uso da plataforma da Escola Virtual e continuamos a usar a plataforma Teams de forma regular desde o ano passado”, explica.

 

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