Em 27 anos de carreira, recusei-me sempre a dar o meu número pessoal de telemóvel aos encarregados de educação subordinado a um princípio que sempre considerei essencial – a separação da minha vida profissional da minha vida privada. Porém, os confinamentos e o Ensino à Distância forçaram muitos professores a fornecerem os seus números aos pais, sobretudo os que, sendo diretores de turma, não tiveram outro remédio para que o ensino pudesse funcionar. Daí para cá, numa sociedade infantilizada, com dificuldade em cumprir regras e em respeitar os professores, os abusos sucederam-se.
O que me traz aqui foi a simples gota de água que fez transbordar o meu copo. Ontem, sábado, dia de descanso, às 23h35 recebo várias mensagens no WhatsApp de um pai a comunicar-me um assunto da máxima urgência e gravidade – ora vejam só: a simples justificação de uma provável futura falta à escola do seu rebento. Estávamos a dormir e acordámos assarapantados (julgando tratar-se de algum caso familiar de maior gravidade), quando fomos surpreendidos com esta imprópria intromissão na nossa privacidade.
Embora já tenha, reiteradamente, lembrado aos pais que o meu número privado só deverá ser utilizado em casos muito excecionais e no horário laboral, os abusos persistem. Pais a telefonarem à noite informando que o filho está indisposto podendo vir a faltar no dia seguinte, seguido por telefonema antes das 7h da manhã porque passou mal a noite, rematado com nova chamada 1 hora depois comunicando já estar melhor e que irá para a escola. Tudo isto, depois de eu informar logo ao 1º telefonema que não me deveria ter ligado, pois era assunto que deveria ser comunicado à escola, a qual depois me notificaria. A ligarem com não-assuntos em estado de aflição, revelando uma imaturidade superior à dos filhos e uma falta de discernimento. Numa época em que o email institucional é o veículo privilegiado de comunicação casa-escola, esta invasão da vida privada dos professores demonstra um desnorte e uma indesculpável falta de respeito pelo nosso tempo de descanso.
(Hoje mesmo seguiu um email a relembrar os pais da minha DT que o meu número é privado, que só deverá ser utilizado em caso de força maior em horário laboral e que o email institucional deverá ser o utilizado, assim como o número da escola. Um último aviso antes de ter de tomar a medida de bloquear os números de telefone dos encarregados de educação. Seguiu, igualmente, email para a direção do agrupamento.)
Os pais andam completamente alucinados, com falta de sentido de oportunidade, de respeito pela privacidade dos professores, julgando que, desde o período extraordinário de confinamento, estes têm de estar ao seu serviço 24h por dia, 7 dias por semana.
Estes e outros casos têm acontecido com imensos colegas de profissão ao longo dos tempos mais recentes, mesmo depois de insistentemente os professores avisarem sobre o carácter muito excecional do uso do nº privado do professor. Antigamente o contacto da escola chegava perfeitamente para que o ensino funcionasse.
Mas tudo isto advém da falta de regras de uma sociedade repleta de pais inconscientes na educação dos filhos, que não sabem impor regras, horários e prioridades. Pais que habituaram os filhos a telefonar-lhes constantemente ao longo do dia, ou caso lhes tenha corrido mal um teste ou tirado uma nota menos satisfatória, ou se alguém lhes disse uma palavra menos simpática, ou qualquer outro assunto banal que poderia e deveria perfeitamente ser tratado em casa. São esses mesmos pais (tão preocupados) que em casa não têm tempo para conversar com os filhos, acompanhar as tarefas escolares, fazer-lhes companhia e vigiá-los quando estão no telemóvel ou no computador.
Pais que, muitas vezes, não aparecem nas escolas por alegada falta de tempo, mas que, para criarem grupos de Facebook e de WhatsApp para falarem mal dos professores ou das escolas, já têm tempo de sobra. Muitas vezes os miúdos nem comunicam aos professores as situações e vão contá-las aos pais que nesses grupos e redes sociais criam romances ao redor de nada procurando justiça pelas próprias mãos e julgando pessoas sem conhecimento de causa das mesmas nas costas dos diretores de turma que, muitas vezes são os últimos a saber. Em vez de se dirigirem à escola para se acercarem das situações, confecionam enredos e má-língua difamando sem conversar com os visados nem apurar os factos. Falta de valores, de consciência e de educação de uma sociedade pouco polida e pouco responsável.
Mas este abuso e violência sobre os professores não vem de hoje. Começou há 15 anos e tem-se arrastado até aos dias de hoje, quando primeiros-ministros e ministros da educação começaram uma campanha ignóbil de maus-tratos aos professores, inundando a população com mentiras e calúnias que denegriram a nossa imagem, acompanhadas de uma máquina de propaganda esmagadora que, usando-se da comunicação social, difundiram mensagens difamatórias replicadas até à exaustão por comentadores e analistas pouco esclarecidos e de idoneidade muito duvidosa.
Não bastando já a constante invasão da nossa privacidade por parte de muitas direções que inundam as nossas caixas de correio eletrónico com emails a qualquer hora e dia, que em qualquer assunto se colocam sempre do lado dos pais, uma tutela que nos tem tratado como lixo e, agora temos ainda de assistir a este assalto dos pais ao nosso espaço e tempo de descanso.
E ainda há quem tenha dúvidas sobre o motivo desta profissão ser cada vez menos atrativa?
Alguém precisa de se questionar se os professores têm motivos para se queixarem?
Desabafei, vai haver consequências e espero que nós, professores, não permitamos que um estado de exceção pandémica passe a ser regra; não podemos permitir estes horários e sistemas de trabalho invasivos em que, também, somos obrigados a utilizar os nossos meios e equipamentos pessoais; não podemos continuar a permitir que nos continuem a espezinhar. Dignificar a profissão, também é isto, começando por exigir o respeito pelo nosso tempo de descanso, pelo tempo da nossa vida pessoal e familiar. É hora de dizer basta!
Carlos Santos
22 comentários
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Faço das palavras do colega as minhas palavras .
Estou mesmo fdt. Mas nós também temos culpa .
Por mim, só dou o meu mail e com a respetiva resposta na hora de atendimento. A maioria dos Dt`s sofrem de complexos de culpa e entendem que quanto mais disponíveis estiverem mais esconderão a sua incompetência profissional.
O problema maior é que com estes comportamentos criam nos EE expetativas relativamente ao trabalho de um DT e que se o futuro DT do seu rebento não corresponder à sua expetativa…
Eu tenho 2 hrs letivas para a realização do meu trabalho de DT e será apenas nestas horas que farei este trabalho não dando o meu nº de telefone pessoal a ninguém.
O maior problema de alguns indivíduos que pertencem à classe docente é acharem que são os maiores, sendo os demais colegas os incompetentes. Pela natureza da profissão, é compreensível que um professor se sinta bem quando corresponde às espectativas do outro. Estranho seria, se assim não fosse.
Infelizmente são escolhidos para as direções das escolas os que mais pensam no próprio umbigo. E criar mecanismos para delegar em Dts é muito mais fácil do que fazer!
O professor tem razão no que expõe, no entanto os pais também se educam.
Também é possível estabelecer balizas na relação à distância com os encarregados de educação. Estou há dez dias com a turma em isolamento profilático. Todos têm o meu número de telemóvel pessoal desde o confinamento do ano letivo anterior e tenho todos os EE num grupo de WhatsApp.
Sou titular de turma e, de facto, cá em casa também começou a haver a exclamação “a esta hora?”!
Mas tal como a televisão tem um botão para desligar, o telemóvel também nos permite colocar em silêncio quando queremos “desligar” e descansar. E sim, já tive de bloquear um número de uma EE. Não me merece, por um conjunto de atitudes, esse privilégio. A senhora percebeu e envia e-mail. Respondo quando entendo ser oportuno. As famílias também se educam. Há que manter o bem-estar e proteger a saúde mental, não é? São pequenos gestos, apenas. A indignação, quase sempre, fica sobretudo connosco. Um abraço.
A culpa é vossa, professores. Qualquer dia também oferecem a vossa casa para o aluno A, B e C por isto ou por aquilo.
Roberto,
Não é uma questão de culpa! É uma questão de boa-fé nas competências sociais dos nossos concidadãos.
Aliás, estas queixas não são apenas relativas a alguns encarregados de educação, porque todas as generalizações são perigosas.
Não faltam queixas semelhantes sobre os pares e sobre as lideranças intermédias, que são muitas vezes bem invasivas da vida pessoal dos docentes.
Está a ser ingénuo. Imagino um professor de História, que poderá ter até 11 turmas. 11 vezes 30 equivale a 330 alunos. Tendo em conta pais e EE, poderemos estar a falar de o seu n.º de telefone estar na posse de quase 1000 pessoas. Estarei a exagerar? Talvez, mas, por caricato, pode suceder. Isto só num ano. No meu ponto de vista, isto não faz sentido e é estar a «pedir» aborrecimentos.
Porque é que o meu avatar saiu diferente?
Roberto, no meu agrupamento já foi proposto pela Direção, que um menino fos Apoios Educativos fosse tê-los no quintal da professora… Por ser mais perto de casa, em tempo de pandemia… Portanto, tudo se espera!!!!
É fácil: bloqueie o n° de tlm dos EE.
Tenho pená de alguns colegas tão tontinhas que até dá dó.
Masoquistas é o que são e se alguns pudessem ainda iriam à casa deles adormecê-los.
Lamento, mas o colega que escreveu o texto estava a pedi-las! Os contactos com a escola devem ser institucionais e não pessoais, havendo, para isso, números de telefone e endereços de email institucionais, grupos no Teams ou no Moodle, etc. Provavelmente por causa da avaliação, muitos docentes coeçaram a “dar graxa” aos alunos e aos encarregados de educação, numa espécie de concurso de “miss simpatia”, ultrapassando as barreiras entre o pessoal e os intitucional. Tratam alunos adolescentes por “queridos”, metem-se na sua vida privada, telefonam aos pais a toda a hora, fazem intrigas com os alunos e os pais em relação a outros colegas, etc… E isto quando deveriam estimular o desenvolvimento da autonomia dos alunos: a maioria dos problemas de que se queixam podem ser resolvidos por eles próprios.
Nem mais.
Há alguns anos que, como DT, dou o meu número, mas não atendo telefonemas de números desconhecidos ou de Encarregados de Educação a partir das 18h/19h. Se quiserem, podem enviar e-mail ou mensagem, mas nunca respondo no fim de semana ou fora do horário que estabeleço, a não ser que se trate de uma urgência (o que até agora só aconteceu uma vez). No entanto, raramente recebi telefonemas despropositados a horas indecentes, embora tenha recebido alguns, são pessoas mal formadas e/ou que julgam que têm o direito de dispor do tempo dos outros quando bem lhes apetece, um mal crescente atualmente, não só neste tipo de situações. Todos sabemos bem o hábito que se criou nalgumas escolas em que os colegas se acham no direito de incomodar (é exatamente esta a palavra) os outros colegas quando bem lhes apetece. Mas é possível resistir a estas violações da intimidade e do tempo destinado ao descanso e ao lazer, dando-lhes o tratamento que merecem – simplesmente desprezando-as e ignorando-as, até ao dia seguinte ou até segunda-feira caso aconteçam no fim de semana.
Pois também sou Dt e apenas trato dos assuntos relacionados com esta funçào,nas horas que tenho no horário ou quando vou mais cedo para a escola mas nesta situação,faço porque quero. Existe o e-mail institucional e caso o EE queira usar o telefone,que use o da escola que por sua vez passa a chamada.
A partir daqui,como é obvio consultar/responder a um. e-mail é diferente do que ser importunado a qualquer hora por uma chamada.
Há alguns anos que, como DT, dou o meu número, mas não atendo telefonemas de números desconhecidos ou de Encarregados de Educação a partir das 18h/19h. Se quiserem, podem enviar e-mail ou mensagem, mas nunca respondo no fim de semana ou fora do horário que estabeleço, a não ser que se trate de uma urgência (o que até agora só aconteceu uma vez). No entanto, raramente recebi telefonemas despropositados a horas indecentes, embora tenha recebido alguns, são pessoas mal formadas e/ou que julgam que têm o direito de dispor do tempo dos outros quando bem lhes apetece, um mal crescente atualmente, não só neste tipo de situações. Todos sabemos bem o hábito que se criou nalgumas escolas em que os colegas se acham no direito de incomodar (é exatamente esta a palavra) os outros colegas quando bem lhes apetece. Mas é possível resistir a estas violações da intimidade e do tempo destinado ao descanso e ao lazer, dando-lhes o tratamento que merecem – simplesmente desprezando-as e ignorando-as, até ao dia seguinte ou até segunda-feira caso aconteçam no fim de semana.
Carlos,
Neste momento estou exatamente no papel de DT, mas na realidade não estou a passar por isso. No entanto, revejo essa situação a cada palavra descrita. Sou solidária e não podia ser mais assertivo, descritivo e realista! É mesmo isso! Vamos DEIXAR de ser pacíficos e vamos LUTAR pela dignidade da nossa profissão!! Temos que lutar para não sermos desistentes! Mas devemos ponderar toda a nossa realidade! Somos amplamente maltratados!
Compreendo todo este problema, mas considero que a culpa é nossa.
Mesmo em tempo de pandemia recusei dar o meu nº de telefone a qualquer pai e ou encarregado de educação.Tinham o email da escola e o teams,e todos os assuntos foram resolvidos atempadamente. Nunca tive qualquer problema. Chegaram a ligar para o Agrupamento que me contactou para atender tais chamadas. Atendi pais fora de horas, no Teams, porque eu marquei, não eles.
Desde alguns anos que desligo da escola ao fim de semana. Não consulto emails nem corrijo trabalhos no Teams…acabou-se. Tenho o direito de desligar e de não me chatearem
Pusestes-te a jeito, estavas à espera do quê?
Eu nunca dei nem irei dar o meu nº de telefone a nenhum encarregado de educação ou aluno.
Durante o confinamento sempre que foi necessário telefonar, fi-lo sempre com nº anónimo.
Também à diretores de turma que criam grupos de Whastapps com os E.E. da turma, depois queixam-se, estão à espera do quê???
Ganhem um pouco de tino nessas cabeças sff.
USEM APENAS O E-MAIL INSTITUCIONAL E DURANTE AS HORAS DO VOSSO TRABALHO, É PARA ISSO QUE ELE SERVE.
Há
Acho que muitos colegas facilitam e depois aparecem os abusos.
Eu só trato de assuntos através do meu email institucional. Respondo aos emails enviados pelos EE na hora da componente não letiva de direção de turma. Atendimentos presenciais são marcados por email nas horas de atendemento ao EE. Em caso de urgência uso o TLM da escola. Não dou azo a abusos.
Claro que tenho na minha escola colegas que se colocam a jeito. Depois queixam-se!
Sou DT. Nunca dou o meu nº telemóvel. Contactos, apenas no e-mail institucional e por telefone para a escola. Colocou-se a jeito. O pior é que esse comportamento cria expectativas nos EE, depois acham que todos os professores têm que ter essa disponibilidade. Caso não tenham esse comportamento são maus professores. É por isso que a nossa classe está como está e o governo faz o que quer.