Não propriamente “quem somos nós?” pois, para essa gente, nós não somos gente, não somos pessoas, não temos família, não temos vida própria, não temos vida, não somos nada.
Somos uma coisa ao serviço público, que abraçou o espírito de missão porque assim o quis. Amigos, família, cônjuges e filhos, na mente dessa gente não passam de danos colaterais que têm de pagar pelas nossas escolhas e pelo modo como ousaram nos tratar. Acreditam que, quando um dia aceitámos assinar um contrato para exercer esta profissão, sabíamos ao que íamos e a vida difícil que nos esperava. Evidentemente, uma abjeta dose de mentira! Mudaram as regras a meio do jogo, aumentaram escandalosamente a idade da reforma, congelaram carreiras prolongando-as para ser impossível chegar, sequer, perto do topo, sobrecarregaram-nos de trabalho e burocracia, invadiram as nossas vidas privadas tendo-nos ao serviço a qualquer dia e a qualquer hora, dificultaram o nosso regresso às nossas casas, arruinaram os nossos projetos de vida, de carreira e os nossos sonhos, atropelaram os nossos direitos e, depois de nos usarem, ignoraram-nos. Meditativamente lembrei-me de que, ainda há pouco, o fizeram durante os confinamentos, momentos nos quais nos superámos, demos o melhor, disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana, para que o país não parasse, para que a economia não colapsasse, para não deixarmos nenhum dos nossos alunos para trás, e agradeceram-nos com a desconsideração pública, financeira e profissional do silêncio absoluto e do desprezo.
Um dia meteram-nos num carro e mandaram-nos para longe das nossas famílias e nunca mais voltámos. Tiraram-nos a estabilidade, atiraram-nos para a estrada, puseram-nos a trabalhar onde, quando e como quiseram… depois de toda essa violência física, psicológica e emocional que nos roubou a saúde e anos de vida, ainda tiveram a petulância de nos dizer na cara que não trabalhámos, não percorremos as estradas do país a ensinar, não nos sacrifícios a nós e a quem nos é próximo, não abdicámos de tanto e, descaradamente, roubaram-nos esse tempo de serviço como se tudo isso não tivesse contado para nada.
Recentemente, empurraram-nos para formações dia e noite e fins de semana, relatórios e papelórios, aulas observadas e cotas e, depois, ofensivamente esqueceram-se de nos reposicionar nas carreiras e, tampouco, pagar o que nos devem.
Acossados de tanta ingratidão e roubo a somar a 12 anos sem atualizações salariais, mais pobres, com vidas e trabalho mais difíceis, governados há décadas por imbecis e incompetentes que só abrem a boca para nos dirigir uma torrente de palavras menos lisonjeiras ou mexerem na legislação para nos complicar a vida, deixaram-nos num estado de desânimo total sem perspetivas de que um dia possamos vir a ser substituídos por falta de candidatos que se queiram sujeitar a esta vida árdua e instável.
Amanhã, após mais uma semana inundada de reuniões abusivas fora de horário e de trabalho excessivo que ultrapassa 46 horas semanais, enganados e roubados, lá iremos regressar à estrada ou a algum quarto solitário longe da vista de todos para onde nos atiraram há décadas, atormentando-nos e extorquindo-nos mais um e outro dia como se nenhum mal nos estivessem a acometer. O maior sucesso de toda a propaganda e da subjugação da razão é conseguido sempre que a verdade se enche de silêncio e deixa o mal acontecer. E nós, professores, carregados de razão, tão revoltados quanto silenciados e submissos, vamos continuando a ser abusados enquanto ninguém diz nada, enquanto ninguém faz nada. Desde que apareçam resultados que deem votos ou enquanto a escola estiver de portas abertas para receber os filhos dos outros, enquanto os nossos ficam algures deixados para trás, tudo vai bem na terra da hipocrisia e ninguém se queixa, ninguém nos olha, ninguém nos vê, ninguém diz nada.
Pura insensatez pensar que teriam interesse ou tempo para nós, para nos ouvir, para se reunirem com os nossos representantes, para melhorar as nossas vidas (ou, pelo menos, não as infernizarem ainda mais), quando encontraram todo o tempo do mundo para o seu único propósito – poder brincar às politiquices e eleições que nada interessam às nossas vidas, num febril frenesim de distribuição de tachos e panelas – voltando, em breve, ao manancial de promessas para logo se esquecerem por completo da nossa existência.
Enquanto, em público, enchem a boca de mentiras sobre o mar de facilidades que têm vindo a derramar sobre as nossas vidas, laboriosamente tratam de as fazer num contínuo inferno.
Nós não queremos o seu fingido reconhecimento; não precisamos das suas promessas vãs; dispensamos o seu abraço de Judas; não acreditamos nas suas dissimuladas boas intenções. O que deles queremos é tudo aquilo que nos devem e que cabe naquela palavra que há muito desconhecem: RESPEITO; respeito em não nos roubar tudo aquilo que é nosso por direito; respeito, valor e consideração por tudo aquilo que nós representamos enquanto pilar essencial da sociedade e por tudo aquilo que fizemos, nos prometeram e nos roubaram.
“Respeito”, aquilo que gente desta, que durante décadas nos tem diminuído e desrespeitado, não merece.
Os anos e as décadas foram passando como paisagens pela janela de um carro em movimento e, hoje, ao anoitecer da vida, olhamos para trás e torna-se impossível não comparar aquilo que fomos com aquilo em que nos tornámos aos olhos de tantos parasitas que se serviram da coisa pública para nos usarem, deixando-nos perpetuamente abandonados na beira desta estrada.
Depois desta dança de cadeiras, na certeza de que, para nós, nada mudará para melhor, fica um único pensamento claro e cristalino: se não fizermos nada por nós, ninguém o fará… e só irão até onde nós deixarmos.
Amanhã, invariavelmente, desalentados lá regressaremos a essa mesma estrada…
Carlos Santos