Chega a ser perturbador ver quantos, dentro de uma sala de professores, dizem já não aguentar a profissão que escolheram. A profissão que um dia os iluminou. E que ainda os apaixona. Se, por um lado, sonham com a alforria flagelante de uma aposentação, por outro não trocariam a sua profissão de décadas por nenhuma outra.
O abandono escolar não se faz só de alunos. Faz-se também de professores. E faz-se à vista desarmada, ao ponto de dispensar prova e estatística. São aos milhares os que se afastam daquele que dizem ser o mais incendiário e luminoso ofício do mundo: transformar quem não sabe em alguém que sabe.
Como se apaga um professor
A quantidade de docentes que abandona a profissão representa uma ferida permanente nos sistemas educativos. Não nos ocuparemos aqui com a trama das aposentações. Não é isso que discutiremos. Vamos ao que importa, mesmo. A um fenómeno mais remoto. O temor maior de qualquer profissional. A abdicação. Os professores que, permanecendo no “quadro”, já há muito o abandonaram. Aqueles que deixaram de acreditar. Que perderam o amor à escola. Que a transformaram tacitamente num emprego. A renúncia. A capitulação íntima de deixar de se querer estar onde se está. Não é coisa pouca. Falamos de um incêndio com muitas frentes activas e muita área ardida.
Atravessamos uma conflagração de rendições silenciosas, cujas consequências ultrapassam a mera dimensão individual. Há milhares de docentes a reconhecer que já não encontram dentro de si aquele vigor intrínseco, indispensável para acompanhar conjuntos de jovens, que cada vez mais exigem esse tónus muscular e emocional. Chega a ser perturbador ver quantos, dentro de uma sala de professores, dizem já não aguentar a profissão que escolheram.
A profissão que um dia os iluminou. E que ainda os apaixona. Se, por um lado, sonham com a alforria flagelante de uma aposentação, por outro não trocariam a sua profissão de décadas por nenhuma outra. E ninguém se entende. Uns é porque tudo está diferente, outros é porque nada muda. Uns dizem que os miúdos estão insuportáveis, outros dizem que é só por causa deles que ainda não se foram embora. Uns dizem que estão indiferentes e apáticos, outros que são irrequietos e insolentes. Mas estão de acordo com algumas coisas. Que não foi para isto que estudaram. Que não é nada disto que queriam. Que antes, ao menos, respeitava-se a “figura do professor” e que hoje nem se sabe bem o que isso é. Que há uma degradação contínua do sistema educativo. Que estão velhos. Que só o dinheiro manda e que não há dinheiro para nada. “Economicista”, coisa benigna, tornou-se chavão pejorativo.
Não obstante o aviso de muitos, a quarentena de admissões no funcionalismo público não ajudou nada. Bem pelo contrário. Tomada por uma boa ideia para reduzir a sua pegada orçamental, “Menos Estado, melhor Estado” foi a proclamação hipnótica do canto das Nereidas do Défice. Mas, como qualquer velho sabe, nem sempre o que parece, é.
No caso da educação, tais medidas representaram nada menos do que um acto de extorsão pública. Um arresto irresponsável da vitalidade essencial a qualquer sistema educativo. Afugentar sangue novo das salas de professores produziu uma anomalia organizacional de contornos terríveis. Não saber prever que a reposição dessa vitalidade iria demorar décadas e muito mais fortunas do que aquelas que se pouparam é, simplesmente, uma medida própria de um tonto. Um tiro no pé. Nenhuma empresa privada arriscaria tal desvario. Seria até mais provável que enxotasse os velhos para dar lugar aos novos. De resto, isso acontece todos os dias. Fazê-lo na educação gerou, ao invés, o advento de uma maioria silenciosa que custa rios de dinheiro e uma constante perturbação do curso regular das aulas.
Recrutar professores começa a parecer-se com um leilão onde só licitam os desesperados. E o desespero é um sector em expansão.
Na azáfama de exterminar a já irrisória reputação dos professores, os jornais afadigam-se periodicamente em noticiar milhares e mais milhares de baixas médicas fraudulentas na educação. Tornou-se um clássico. Mesmo que logo a seguir nos choraminguem mais outra professora oncológica que uma frígida junta médica sentenciou que fosse, mas é, trabalhar.
QUEM SÃO ESTAS MULTIDÕES DE PROFESSORES QUE TENTAM ESGUEIRAR-SE DA SUA PROFISSÃO?
Mais do que serem “fraudulentas”, interessa perceber porque são milhares e mais milhares. Quem são estas multidões de professores que tentam esgueirar-se da sua profissão? Porque o fazem. De que fogem? De quem fogem? Por que fogem? O que lhes fizeram?
Perguntem à Helena, professora de Filosofia, desde sempre reconhecida como professora exemplar; sempre encorajadora dos seus colegas e amada pelos seus alunos. Foi orientadora de dezenas de estágios: “Há colegas que são tão bons para os miúdos. É um gosto vê-los a crescer como profissionais. Tenho muitas saudades disso”.
Perguntem à Luz, que passou pelo Ensino Superior com enorme sucesso e que, depois, se entregou de corpo e alma a todas as suas turmas do secundário e que dela têm, anos passados, a mais sorridente recordação. “Não imaginas o grau de culpa que sinto por abandonar os meus alunos”.
Perguntem ao Pedro, que foi para Timor dois anos e de lá trouxe uma inesquecível experiência que espalhou por toda a escola, dinamizando clubes, exposições, conferências. “Percebi que dava demasiado de mim aos meus alunos e descuidei a minha saúde e a minha família. Não podia continuar”.
São tantos os professores que encontramos por aí, desembrulhando atestados e sussurrando esgotamentos. Ver estas sombras de si mesmos e mentir-lhes o melhor possível, assegurando que estão com bom ar, enquanto nos confessam medicações e sorrisos tristíssimos é uma desolação permanente. Vemo-los em nós. São um pouco de nós. Eram como nós. Como foram ali parar?
“Esta sala de professores mais parece o Vale dos Caídos”, brincava a sério uma colega há dias, ao mesmo tempo que ali preparava “um lanchinho informal para todos quantos queiram aparecer às seis da tarde”. A quantidade de professores com acompanhamento regular por depressão é interminável.
É PRECISO SABER RESPONDER A UMA PERGUNTA: “COMO SE EXTINGUE UM PROFESSOR?”
Não é precipitado ou crédulo imaginar que ainda podemos ir a tempo de evitar um cataclismo. Há uma diferença entre o famigerado burnout e a desmotivação dos professores. Dentro de cada organização educativa deve-se estudar e combater os passos, as medidas, as decisões e as indecisões que eliminam qualquer vestígio de prodigalidade e entrega, atributos essenciais de todo o educador.
É preciso saber responder a uma pergunta: “Como se extingue um professor?”
Nada mais simples.
Três coisas: aumentar as distâncias, adular o acessório e descuidar o essencial.
Insistir na prevalência do administrativo sobre o pedagógico; perder o pulso directivo perante a degradação da urbanidade entre a miudagem; considerar o assédio moral como uma ferramenta de ortopedia e liderança organizacional; circunscrever a condução democrática do sistema representativo escolar, privilegiando uma cultura “colegial”; reduzir artificialmente as classificações dos professores em avaliações de desempenho, porque “não há quotas”, depreciando professores com evidências de “excelência”; manter uma cultura hierárquica de condescendência institucional; generalizar modelos pedagógicos benevolentes e divorciados de qualquer relação original com as comunidades onde se pretende que venham a ser implementados; animar um constante estado de tumulto legislativo que conduz à mais completa ininteligibilidade do sistema educativo por parte dos seus principais actores e protagonistas; descuidar uma política activa de atrair e reter professores na profissão; persistir nas dosagens em conta gotas nos apoios a alunos mais necessitados, material e academicamente, esmagados em papelada bem intencionada, de emprego exclusivamente protocolar; persistir no sistema de comunidades educativas descomunais onde todos possam viver em espaçoso isolamento; manter uma política salarial e um estado de vulnerabilidade laboral que impedem que uma mulher e o seu homem achem boa ideia ter filhos, no intervalo que consideram biologicamente adequado das suas vidas.
O abandono dos docentes não é um fenómeno português. A época de incêndios está aí e é internacional. A insatisfação profissional e a preservação da saúde mental constituem as suas principais causas.
A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação do Rio de Janeiro revelou que 54% dos professores brasileiros já pensou em abandonar a sua profissão.
Um estudo norte americano aponta para cerca de 30% o número de professores com sintomas de depressão. Portugal caminha na mesma direcção. “Adoro os miúdos e é muito desafiante perceber que podes mesmo fazer a diferença nas suas vidas. Mas é destruidor perceber também como és tão pouco valorizado, com pais mal-educados, direcções escolares acomodadas, uma sobrecarga de trabalho e salas de aula com turmas enormes”, dizia-nos um professor de música, doutorado: “Nem falo de vencimento. Tenho 12 turmas. Nunca vou conhecer os meus alunos. Só em Conselhos de turma e intercalares são 60 reuniões. Entro num ciclo interminável de stress e sensação de incapacidade crónica. Quero sair daqui, mais cedo do que mais tarde”.
Enquanto muito se fala da “formação de professores”, pouco se pensa sobre a “deformação de professores”.
Inverter tudo isto tem de ser uma obsessão política, se pretendermos rechear as escolas com gente completa, entregue, vivida. Caso contrário, extinta a chama original, onde havia seiva só restará cinza.