A minha prática é boa, mas a tua não…

 

O principal objectivo da “anciã” massificação do ensino foi permitir e fomentar a igualdade de acesso e de oportunidades em relação à Educação, uma Escola para todos, visando a democratização do ensino. 

Passados mais de 50 anos, a lógica do ensino massificado parece, contudo, estar “viciada”: a Escola, apesar de possuir funções tão importantes como a instrução, a socialização ou o desenvolvimento pessoal e social, determina, em grande parte, as aspirações dos alunos, uma vez que, em lugar de anular ou corrigir as assimetrias/desigualdades iniciais, as torna, por vezes mais evidentes. O corolário desse efeito será, em última análise, legitimar as diferenças sociais, transformando-as em diferenças escolares e assegurar o “normal funcionamento das instituições”, através da reprodução social… E sobre isso não parece haver qualquer celeuma ou “blasfémia”… É assim e muito dificilmente deixará de ser assim…

 Por outras palavras, afirma-se, por um lado, que compete à Escola anular as diferenças iniciais, de forma a torná-la acessível para todos e a proporcionar sucesso universal, mas por outro lado espera-se que a mesma seleccione indivíduos, de acordo com os respectivos resultados escolares. Queira-se ou não, a anulação das diferenças iniciais é impossível de concretizar pela Escola, incapaz de eliminar as assimetrias associadas às condições socioeconómicas e culturais de origem, a não ser que se acredite que o Sistema Educativo Português é o único no Mundo capaz de alcançar tal feito; e a selecção de alunos, impossível de dissociar dos resultados escolares, só poderá ser anulada se se instituir uma política educativa que assuma explicitamente o término das retenções em todos os níveis de ensino…

 Não sendo previsível que tal venha a ser assumido pela Tutela, sempre muito preocupada com as estatísticas mas alheada da realidade, não é legítimo exigir à Escola que, em simultâneo, continue a seleccionar indivíduos com base nos seus resultados escolares, mas que também consiga não “deixar nenhum aluno para trás”, conforme o léxico usado pelo paradigma vigente… O que se está a impor à Escola é profundamente irrealista, mas também intelectualmente desonesto… As duas premissas em simultâneo não são concretizáveis, por serem incompatíveis: ou se tem uma ou se tem a outra. Ou então mudem-se os princípios porque lograr conciliá-los não passa de uma utopia…

E o que existe neste momento, por força de normativos legais e por decreto, é um sucesso escolar artificial e uma pseudoinclusão, supostamente prescritivos de práticas pedagógicas diferenciadoras e inclusivas, mas que, em abono da verdade, apenas têm contribuído para o acréscimo exorbitante de tarefas de natureza burocrática que, em última análise, não beneficia os alunos, nem vai ao encontro das suas reais necessidades, antes pelo contrário. A falácia parece evidente…

 Assim sendo, a Escola não tem outra alternativa a não ser aceitar como “natural” o insucesso escolar que produz e isso também parece incontornável… Se a Escola selecciona indivíduos e se não consegue garantir a todos a obtenção do sucesso escolar, como podem manter-se e serem cumpridos os objectivos inerentes à massificação do ensino?

 A classe docente é a primeira a sofrer as consequências dessa incontornável contradição: por um lado, parece ignorar-se a figura do professor, detentor de cognições, motivações e emoções; por outro, espera-se dele que consiga fazer surgir nos alunos o máximo de motivação, curiosidade e interesse pelas aprendizagens, responsabilizando-o, em primeira instância, pelo eventual insucesso escolar…

Como conciliar o professor que também é pessoa, e todos os estados d´alma a que legitimamente tem direito, com aquilo que se espera de si em termos profissionais, acrescido do facto de muitas famílias, auto-demitidas das suas responsabilidades educativas, delegarem na Escola, em particular nos professores, esse ónus?

 Não há Escola sem resultados escolares, parece óbvio. Mas esses resultados dependem de várias variáveis e não apenas de uma: alunos, professores, famílias ou Ministério que tutela a Educação/Políticas Educativas são algumas das variáveis mais influentes nessa equação… E qualquer intervenção numa dessas variáveis pode induzir alterações ao nível dos resultados escolares, no sentido positivo ou no sentido negativo… Portanto, não parece válido atribuir apenas a uma delas, neste caso aos professores, a principal responsabilidade pelos resultados escolares, sejam eles indicadores de sucesso ou de insucesso. Pelo anterior, essa responsabilidade não pode deixar de ser sempre partilhada por todas as partes envolvidas no processo de ensino-aprendizagem, independentemente da qualidade do respectivo contributo…

 Em relação às práticas educativas, criou-se nos últimos anos a crença convencionada da influência determinante das “boas práticas” na obtenção de sucesso escolar, como se de uma entidade “mágica” ou panaceia se tratasse… É até habitual organizarem-se eventos, com alguma pompa e circunstância, quase sempre patrocinados por edilidades, onde são apresentados muitos e variados projectos de “boas práticas”, cujos proponentes costumam ser Agrupamentos de Escolas. Às vezes, esses eventos, chegam mesmo a parecer uma espécie de “montra de vaidades” das “boas práticas”, justaposta com algum “show-off”, mais ou menos explícito…

No site da DGE também pode ser consultado um item dedicado às “boas práticas”, prova de que, para alguns, o conceito existe e que é veiculado pelas entidades oficiais do ME…

 E o que serão afinal “boas práticas”? A palavra “boas” corresponde, à partida, a um juízo de valor explícito que, enquanto tal, é subjectivo…

Objectivamente, o que significa “boa prática”? Quem decide, e com que critérios, se uma prática é “boa”, “má” ou “assim-assim”? Como se mede e avalia uma prática, de modo a certificar a sua qualidade? Há algum tipo de “guidelines”, de “check-lists” ou outro qualquer instrumento que o permita fazer? Ou mede-se “a olhómetro”, de acordo com apreciações especulativas?

Por oposição à passividade atribuída àquilo a que comummente se designa por aulas tradicionais, expositivas, em que o professor tem o papel mais relevante da acção, parece que, pelo paradigma actual, se generalizou que as “boas práticas” são sempre aquelas que estão imbuídas pelo espírito das denominadas metodologias activas, pelo trabalho de projecto ou outros procedimentos, sempre muito pretensamente inovadores, dando ao aluno um suposto protagonismo…

E se estas, por convenção, são qualificadas como “boas”, subentende-se que as práticas que não se guiam por esse pensamento, não o serão…

 O viés decorrente do que parece ser um estereótipo e um preconceito fundamenta-se numa dicotomia artificial e injustificada: porque não podem as duas visões ser complementares uma da outra, em vez de opostas ou inconciliáveis?

 Na realidade, não parece crível a existência das convencionadas “boas práticas”. Há práticas, mais ou menos expositivas, que resultam melhor ou pior, que são mais ou menos eficazes, em função das características dos alunos, das turmas e dos próprios professores… Sim, os professores não são todos iguais, também têm características próprias, esse aspecto particular, muitas vezes ignorado…

 O jargão das “boas práticas” parece incluir quase sempre alguns “palavrões” deste género: fórmulas educativas orientadas para a satisfação dos destinatários; inovadoras, transformadoras, adaptáveis a diferentes contextos, úteis, potenciadoras de resultados; apelam ao pensamento estratégico, imprescindível ao design da educação; modelo compósito e holístico, fundamental para as dinâmicas de inovação pedagógica…

 Na realidade, e o que quer que tudo isso signifique para alguns, aquilo que se convencionou designar por “boas práticas” parece poder ser tudo ou não ser nada… 

 

(Matilde)

 

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6 comentários

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    • Pintaroxo on 7 de Fevereiro de 2021 at 12:29
    • Responder

    Escreve bem a Matilde.
    Ler Inger Enckvist.
    A escola é uma janela para valorizar o mérito de cada aluno e para selecionar os mais competentes para assumir responsabilidades sociais quando o professor voltar a ser respeitado, quando voltar a ser um sábio e um cientista, quando a sua proveniência for de instituições superiores válidas . A escola voltará a ter o papel de escolher bem e orientar bem os alunos quando a disciplina for restaurada, quando os pais forem colocados nos seus papeis, quando os diretores forem professores, quando os professores forem expositivos quando necessário e compassivos quando necessário.
    As elites que governam o mundo não estão interessadas nesse tipo de escola capaz de escolher os melhores para as diferentes áreas. Querem perpetuar-se nos seus poderes, sejam eles quais forem.
    Aliás, quanto mais confusas, desorganizadas e ignorantes forem as populações melhor para serem reduzidos à condição de meros números, melhor para manipular, melhor para consumir o que lhes é servido!
    Não faltam floreados para enganar tolos!
    Para aprender é preciso ter as necessidades essenciais garantidas pela família e o cumprimento das regras de respeito incutido pelas mesmas. É preciso que os professores saibam o que ensinam, que os “gestores” escolares sejam também professores com nobreza de espírito.
    O saber está sempre a mudar, é preciso aprendizagens activas? Não, o saber não está sempre a mudar, está é a crescer. Ao professor tem que ser dado tempo para acomanhar esse crescimento. Não são os floreados no ensino que garantem a aquisição de competências. Servem muitas vezes para distrair do essencial
    A estabilidade, a organização, a humanidade e a disciplina as são chaves.

    • Alecrom on 7 de Fevereiro de 2021 at 14:57
    • Responder

    Ó Matilde…

    Comecei a ler e pressenti raciocínios diferentes, fora da caixa beatopatriótica.

    Mas,
    confesso,
    não vi que eras tu (só no fim).

    Claro que não me reconheço totalmente no que escreveste (apena para aí 90% 😄).

    “por força de normativos legais e por decreto, é um sucesso escolar artificial e uma pseudoinclusão, supostamente prescritivos de práticas pedagógicas diferenciadoras e inclusivas, mas que, em abono da verdade, apenas têm contribuído para o acréscimo exorbitante de tarefas de natureza burocrática”.

    Matilde,
    quantas mais exemplares “práticas pedagógicas diferenciadoras” conheço, mais certo fico que, quase todas, apenas consolidam e aumentam as desigualdades entre os alunos (cobaias) a elas submetidos.

    E sim,
    já vi colegas (não é o meu caso) que, recorrendo quase sempre a métodos essencialmente expositivos, conseguem resultados (nos alunos) fantásticos.

    Mas,
    tenho de sublinhar…

    Grande parte (95%?) dos exemplares projetos de inovação pedagógica beatopatriótica que tenho vindo a conhecer, não passam de nojentas manobras de propaganda, de perpetuação das desigualdades e de negação do acesso dos mais desfavorecidos ao elevador social.

    Quando alguém me obrigar a exemplificar, tenho tido o cuidado de guardar provas!

    Por exemplo,
    algum de vós conhece um jornal escolar onde se critique aberta, frontal e construtivamente o (dito) projeto educativo da sua própria escola?
    Algum de vós conhece um jornal escolar que não passe de um miserável folheto propagandístico de práticas beatopratióticas (sei que exagero na utilização do termo e dos adjetivos)?

    • Matilde on 7 de Fevereiro de 2021 at 15:45
    • Responder

    Alecrom, “apena para aí 90% 😄”, deixa-me muito lisonjeada!

    Nos 10% restantes teremos que concordar em discordar, “tá-se bem”!… 🙂

    • Rui Manuel Fernandes Ferreira on 7 de Fevereiro de 2021 at 15:59
    • Responder

    EXCELENTE, é o que posso dizer sobre este texto.
    As “boas práticas” não são mais que arranjos artificiais protagonizados por nepotistas que, propalando aquilo que a ignorância ministerial produz, serve de propaganda eficaz sobre tudo o que não funciona.
    Vejamos, o ensino é de teor histórico-cultural, ou seja, ensina-se o conhecimento que o ser humano adquiriu através da investigação empírica, logo será de considerar como “boas práticas” aquelas que ganharem vantagens quando sujeitas ao crivo da investigação empírica. Premissas verdadeiras, raciocínio válido e solução correta.
    Mas não é a isto que andamos a chamar de “boas práticas”. Chamamos de “boas práticas” à experimentação irresponsável (algo criminosa, porque usa as crianças como cobaias sem sequer assinarem a declaração de Helsínquia), quase sempre, levada a cabo por um cão-de-fila ignorante. Tantos que para aí andam!

      • Matilde on 7 de Fevereiro de 2021 at 18:23
      • Responder

      Subscrevo integralmente o 2º, 3º e 4º parágrafos do seu texto!

    • Lúcia on 13 de Fevereiro de 2021 at 18:37
    • Responder

    Muito bom!

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