Todo o poder só se constrói sobre o consentimento dos que obedecem

1. Depois de meses de continuada contestação, os professores apenas reforçaram a sua coesão e ganharam apoio público. São resultados exíguos, que sugerem a pergunta: acabarão os professores por cumprir imposições injustas, que os derrotam?
Se há coisa que se afigura clara para quem vem acompanhando a conduta do ministro da Educação nas negociações com os sindicatos é que as reduz a rituais fadados a epílogos coercivos, sob forma de decretos-lei, que não acolhem as pretensões mais importantes dos docentes. Assim sendo, parece evidente que só novas formas de luta poderão retirar os professores do impasse em que estão.
Ao longo dos anos foram crescendo diversas hierarquias de dominância (administrativas, pedagógicas, disciplinares, sindicais, políticas) no sistema de ensino, que desenvolveram nos professores uma tendência para simplesmente obedecer (mesmo discordando e reclamando) aos que detêm cargos de poder. Foram muitos anos de condescendência, ora por comodismo, ora por falta de opinião suficientemente formada sobre o que, em circunstâncias particulares, protege a desobediência. Com efeito, o problema maior da obediência é o de sabermos até que ponto é legítimo desobedecer.
Se olharmos para a história do pensamento humano, é forçoso reconhecer que muitos dos acontecimentos que promoveram o desenvolvimento e o progresso das sociedades radicaram em actos de desobediência. Por outro lado, sabemos que quanto maior é a coesão dentro de um grupo, mais fácil se torna resistir e desobedecer às pressões que o agridem. É este o momento ímpar, de uma fortíssima coesão entre os docentes, que ora se vive. Luís Costa, um dos professores mais abnegados da nossa classe, entendeu-o e convidou os colegas a assumirem publicamente o compromisso de desobedecerem à prestação de serviços mínimos ilegais. Fê-lo com um texto bem fundamentado em várias disposições legais e no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10.10.18, que declarou ilegais os serviços mínimos anteriormente determinados para greves às avaliações finais. Oxalá muitos o sigam, para que as coisas mudem e a Educação ganhe.
2. As perplexidades subjacentes ao que acabo de escrever ficaram patentes no que acabou por ser a primeira reunião da nova ronda negocial, com uma ordem de trabalhos circunscrita aos seguintes temas: correção dos chamados “efeitos assimétricos” sobre a carreira docente, decorrentes do período de congelamento; redução da burocracia nas escolas; correção da desigualdade na redução da componente letiva relativa à monodocência; regularização de vínculos de Técnicos Superiores e Técnicos Especializados sem funções de formação; apresentação de calendário negocial. Se é evidente que esta agenda deixa de fora o que é mais importante para o futuro da escola pública, a análise dos detalhes das primeiras propostas do ministro expõe a inutilidade do que se seguirá. Retomo a pergunta de partida: acabarão os professores por cumprir imposições injustas, que os derrotam?
3. Das diferentes áreas da governação, a imagem que perdura é a de que quem manda não sabe o que fazer.
Acentuaram-se as desigualdades e cresceu o número de famílias profundamente afectadas pela queda do rendimento real, provocado pelo aumento dos preços dos bens de primeira necessidade.
Sem que disso se fale, reformados e pensionistas da Caixa Geral de Aposentações sofrerão cortes em 2024.
Enquanto o ministro da Saúde justifica a falta de comida no Hospital de Santa Maria com o estranho argumento de que a alimentação não é uma prioridade nas urgências, António Costa dá, em Santarém, 43 milhões de euros a projeto para passarmos a comer insectos.
Depois de uma semana de inusitada guerra aberta em torrão luso, Marcelo e Costa, então na República Dominicana, vestidos de igual, com uma espécie de bibe branco, mudaram o registo do fala-fala dispensável para modo de reality show de afagos e elogios mútuos. Sofreu a credibilidade de ambos e a qualidade da vida pública que nos oferecem.
Não vão bem a democracia, a liberdade e a paz social. Que bem nos faria, se todos reflectíssemos sobre o alcance do título deste escrito: todo o poder só se constrói sobre o consentimento dos que obedecem.
Santana Castilho
In “Público” de 29.3.23

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6 comentários

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    • Revoltado! on 30 de Março de 2023 at 14:59
    • Responder

    Sobre eventuais campanhas de desobediência civil generalizada, contra os serviços mínimos e sobretudo contra a requisição civil que virá a seguir, é só o sindicato garantir verdadeiro apoio jurídico para enfrentar as faltas injustificadas e os processos disciplinares, que os capatazes de serviço marcarão, que amanhã e seguintes, enquanto houver greves marcadas, mando os serviços mínimos para o ******* e não ponho lá um pé, quanto mais 2.

    • Isto só à chapada on 30 de Março de 2023 at 15:34
    • Responder

    Segundo li, nalguns pontos os esbirros do governo (GNR, PSP) estão a montar barreiras para por acampamentos e manifestações bem longe dos sacrossantos governantes, a ver se não se ouve a vozearia. O que vale é que a greve “radicalmente fôfa” da Fenprof vai “reduzir o governo a pó”…

    • Obedeçam, senão levam tau-tau on 30 de Março de 2023 at 18:23
    • Responder

    Duvido que haja estaleca para desobediências civis, quando nem sequer fazem as greves que foram marcadas e depois desculpam-se com os serviços mínimos. Estes, são 3 h diárias. E greve às outras aulas? E greve a reuniões? E greve a avaliações? E greve a serviços extraordinários? E greve a avaliações de docentes? E greve a não-letivas? Ah, pois é: mantêm o sistema a funcionar, e depois querem que o ministro “negoceie” e até falam em “desobediência civil” quando mesmo para as greves marcadas, são tão “obedientezinhos” ao ME que até faz impressão.

    • Mic on 30 de Março de 2023 at 18:36
    • Responder

    Quem se agacha, logo será dominado…

    • Como é que é? on 30 de Março de 2023 at 18:55
    • Responder

    Citando:”
    Tribunal Administrativo dá razão aos funcionários judiciais em greve: é ilegal marcar faltas e descontar o vencimento
    Parecer da PGR pedido pela Ministra da Justiça considerou a paralisação “imprópria”, mas Tribunal Administrativo de Lisboa contraria essa interpretação: “sanção” da Direção-Geral da Administração da Justiça aos trabalhadores “viola direitos fundamentais”. Fim de citação
    Como é que os Oficiais de Justiça conseguiram ter uma resposta atempada dos Tribunais, quando a nós nos dizem que apesar das ações entradas em Tribunal em Fevereiro contra os serviços mínimos, só terão uma resposta na melhor das hipóteses quando o ano escolar tiver terminado?

    • Luís Costa on 30 de Março de 2023 at 20:14
    • Responder

    CONTRA OS SERVIÇOS MÍNIMOS

    Link para subscrever o abaixo-assinado: https://forms.gle/66rMrAZuigYWZTYU8

    Link para aderir ao grupo de subscritores: https://www.facebook.com/groups/930345451720590

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