A Sofia, 12 anos, surpreendeu e preocupou toda a gente quando questionada na escola sobre o que queria ser quando fosse adulta e respondeu: Honesta. Estavam num grupo de trabalho animado, mas em clima ameno. Os colegas riram, mas a professora chegou-se à frente e perguntou: Estás bem? Os pais, gente culta, escolaridade longa, foram informados e ficaram alarmados. Era um problema de psicólogo ou mesmo de psiquiatra. Uma menina perturbada e ainda tão nova!
Lá vão tempos em que a escola era um espaço relativamente imune ao mundo exterior. Essa imunidade acabou. A glória e a miséria entram de mãos dadas e as crianças e jovens são portadores dos “vírus” mais ameaçadores que se transmitem através das televisões, noticiários, internet, com todos os escândalos políticos, económicos e sociais.
Seria suposto que a escola se escudasse num mundo de valores, de princípios, de atitudes que assegurassem a formação de pessoas honestas, disciplinadas, respeitadoras, democráticas, “limpas”. Pura utopia. Entre nós, a escola preocupa-se mais com as notas e os exames, o resto é “poesia”. Sem generalizar. Como cantava o meu saudoso companheiro e amigo Adriano, “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. Como a Sofia.
As crianças e jovens vivem hoje num ambiente em que estão permanentemente expostas ao que o ser humano tem de pior: a corrupção, o roubo, a violência, o crime, a pedofilia, as violações, a guerra, o ódio partidário e clubístico, o bullying, os massacres dentro das próprias escolas. Tudo isto entra nas casas, nos noticiários, nas redes, logo, nas escolas. É neste caldo que aprendem ou que são impedidas de aprender.
A televisão substitui o diálogo familiar à hora das refeições e o programa abrange invariavelmente a instabilidade e os escândalos do governo, as mudanças de ministros e secretários de estado, a corrupção e a mentira no mundo político, económico, bancário e empresarial. Segue-se a guerra interminável, sangrenta, arrepiante. A pedofilia, que atrofiou tantas crianças, a violência doméstica, as greves que nunca mais acabam, as subidas do custo de vida de mistura com a fome e a pobreza. Se Dante voltasse, o seu primeiro capítulo da Divina Comédia – o Inferno – teria de ser reescrito porque tem hoje luzes e sombras que não poderia então imaginar.
As crianças e jovens estão hoje permanentemente expostos a este mundo instável e ameaçador. Para muitos é apenas um espetáculo desolador, mas muitos outros são vítimas deste mundo de violência, de pobreza, de desigualdades gritantes que os revoltam e transtornam. Quantas crianças desistiram da escola e da vida por terem sido abusadas! Os abusadores lavam as mãos e as doenças mentais e o suicídio aumentam assustadoramente.
O mundo de hoje não será pior do que foram os mundos do passado. O problema é que hoje nada se oculta, nada se esconde, entra-nos a cada hora casa dentro, e preenche invariavelmente o mundo da informação. A gravidade dos problemas ganha realce nas parangonas dos jornais e revistas e aumenta o som nos noticiários. A escola poderia ser um espaço de prevenção e proteção, mas passa ao lado.
Chegamos a um ponto em que são as crianças ameaçadas a apontar o dedo aos adultos, mais preocupados com cifrões do que com as pessoas. A saúde das crianças e jovens não os detém. Nem mesmo a sua sobrevivência.
Os problemas sociais e as misérias de todo o tipo não ficam à porta da escola, entram mesmo no seu interior e provocam estragos incontroláveis. Os níveis de escolaridade aumentam, mas baixam os níveis de educação. Muitos pais não têm tempo para os filhos.
A investigação em educação dedica a maior atenção ao clima de escola. Em termos comuns, visa a tranquilidade, harmonia, segurança, camaradagem, espírito de cooperação. Este é o caldo em que a escola pode reunir e criar as melhores condições de aprendizagem e enfrentar o “barulho” que vem de fora e que pode comprometer a construção de uma “mente sã num corpo são”. A verdade é que os problemas não ficam à porta da escola, entram mesmo no seu interior e muitas crianças e jovens perdem a capacidade de concentração.
A educação pelo exemplo deixou de ser um caminho seguro. Os exemplos que hoje damos aos nossos filhos e netos são assustadores e só podem conduzi-los ao inferno. Eles sabem a herança que lhes deixamos. O inferno é o clima em que estamos a transformar o planeta onde ainda vivemos e onde eles poderão viver ou não.
A Sofia tinha a vocação de ser honesta. A verdade é que na galeria das atuais profissões de sucesso é muito estreito o espaço para a honestidade. É um problema de incompatibilidade.
José Afonso Baptista | PhD Ciências da Educação | Diário As Beiras, 9.3.2023
2 comentários
Como podem as crianças serem honestas. Hoje lidam no dia a dia com a desonestidade e tudo terminado em “ade”. Também deveria ter uma Sofia e não só, em convivência diária, mas não conheço. Tem uns pais com formação avançada, mas que não respeitam os avós de Sofia, nada lhe transmitem, muito menos valores!… Como os pais de Sofia queriam tudo que os avós tinham e os queriam internar compulsivamente não tem o mais pequeno contacto com os avós maternos de Sofia. O que irá na cabeça de Sofia? O que vê todos os dias? O que lhes transmitem? O que será que diz na escola? Porque muda de escola? Como será o dia a dia ? Quem irá ser amanhã? …. Esta de certeza que não será a Sofia do texto ☺️!….
Excelente análise e texto. Como professora, lamento que a avaliação de atitudes e valores tenha um peso menor que a avaliação de conhecimentos penso que deveriam ter a mesma ponderação. Contudo, tento nas minhas aulas incutir nos alunos a consciência de ter um comportamento correcto em relação a eles e aos outros só assim poderemos vislumbrar uma hipótese de termos uma sociedade mais harmoniosa e equilibrada. Contudo, reconheço que pode ser uma luta um tanto inglória visto que a televisão ( entre outros ) e os seus programas de baixo nível opõem-se a este propósito mas continuo…na esperança….