24 de Abril de 2022 archive
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Abr 24 2022
Porque vale o nosso trabalho qualificado tão pouco? – Luís S. Braga
Trabalho digno e bem pago ou fantasias missionárias de motivação? (Reflexões sem nexo sobre um vídeo de uma campanha inglesa de captação de docentes… )
Penso que houve quem me levasse a mal ter repetido em público a frase irónica da minha mãe: “os professores são maltratados, mal vistos, mas têm funerais bonitos”.
Houve até quem dissesse que a frase era deselegante. Não vou defender a elegância da linguagem da minha mãe já falecida. Eu sei como era o seu humor subtil, mas profundo.
E, filha e neta de professores, teve 37 anos de professora, inovadora e reconhecida, para ter autoridade para dizer coisas irónicas sobre a sua vida.
A verdade é que ela teve um funeral bonito. Muita gente nos veio dizer nesse dia a importância que ela teve na sua vida. E que a vida dela teve impacto em milhares de outras vidas.
Mas isso não chega. Ela dizia a piada, mas lutou energicamente, guiada só pela sua cabeça, pela melhoria material da profissão.
Tinha muito a perder, com os custos da luta, quanto mais não seja, porque, só com apoio da minha avó, criou 2 filhos. Mas ninguém nunca teve base para a dizer apática ou pouco empenhada nas lutas do seu tempo.
Antes do funeral dela, já tinha assistido a muitos funerais desses da minha larga parentela de professores. Ainda assisti a mais um, depois do dela, e de amigas muito queridas. (Também há quem critique falar tanto desses antepassados, mas devia calar um facto essencial da minha história de vida, porquê?).
O problema é que precisamos mesmo de explicar, a uma sociedade em que o lucro e o “sucesso” são os valores imediatos, o valor de dedicar a vida a ter impacto de longo prazo nos outros.
E que essa dedicação tem um valor social de investimento coletivo que também é remivel em condições de vida, respeito e remuneração. E não só em reconhecimento e palavras bonitas.
Há quem me diga que falo muito de salários e dinheiro e não falo da “missão”. Quem escolhe ser professor escolhe não ser rico e não ser “bem sucedido”. Mas insisto, não escolhe ser pobre e viver mal.
Como diriam os gurus do setor financeiro:
escolher ser professor é um trade off entre estabilidade, propósito e rendimento. Gente talentosa, que escolha ser docente, até pode prescindir de um rendimento futuro maior, que outras profissões lhe dariam, mas não prescindiu em momento nenhum de ser respeitado na sua dignidade e de ter remuneração, que corresponda ao valor social do que entrega à sociedade.
Se a sociedade quer e precisa de professores talentosos tem de os captar. Ter um funeral bonito (e entendam a mordacidade da minha mãe, por favor) pode ser psicologicamente motivador, mas não paga contas.
Se dizem que a educação vale tanto e é tão importante porque vale o nosso trabalho qualificado tão pouco?
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Abr 24 2022
Da falta estrutural de professores: avisos, culpas e soluções
Da falta estrutural de professores: avisos, culpas e soluções
Sucedem-se as análises sobre a tragédia anunciada da falta de professores e discutem-se os remedeios. Mas debata-se o estrutural para que se aprenda com os erros. Aliás, se o essencial não mudar, e se a OCDE concluiu que “os professores portugueses são, na Europa, os mais desgastados, os que mais preenchem burocracia inútil e que são vítimas de uma organização de trabalho que os adoece”, rapidamente os novos professores entrarão em exaustão e se arrependerão da escolha profissional.
E ainda como ponto prévio, é finalmente inquestionável que os jovens rejeitam o ensino como profissão. Mas agravou-se, e contrariou expectativas, porque a robotização do ensino supervisionada por super-humanos (em “de volta ao futuro da Educação – quatro cenários da OCDE“) desacelerou com o imperativo, também evidenciado na pandemia, de recolocar o humano comum no centro das preocupações.
Num resumo sistémico, comece-se pela sonoridade dos avisos; e como a não audição persiste, convoque-se Milan Kundera: “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. E faça-se o que tanto se exigia aos professores: prestação de contas.
O primeiro grito ecoou na histórica manifestação de 8 de Março de 2008 contra a asfixia democrática e a precarização dos professores, numa sociedade convencida pelo discurso anti-professor que incluía uma suposta instrumentalização. Mas em 16 de Abril de 2008, a plataforma de sindicatos assinou um entendimento fatal com o Governo para a testagem das políticas de divisão da carreira e de avaliação. Nessa suspensão do tempo, alterou-se a gestão das escolas – decreto-lei 75/2008 de 22 de Abril – e consolidou-se a tragédia. Quebrou-se a solidariedade em ambiente escolar e sobrepôs-se obsessivamente o individualismo e o utilitarismo ao cooperativo e ao gregário. Percebeu-se, desde logo, que a falta estrutural de professores seria uma questão de tempo.
Apesar de tudo, ainda se fez, em 17 de Junho de 2013, uma dificílima greve aos exames do secundário. Impediu-se que o maior despedimento colectivo da história – 20 mil professores – não duplicasse, mas não se travou o aumento de alunos por turma, a prova de acesso à profissão, a bolsa de contratação pelas escolas e mais agrupamentos. E recorde-se que, enquanto se noticiava um excesso de procura nos professores, precarizava-se a eito. A comunicação social e os governantes, por desconhecimento ou omissão, insistiam, a cada concurso, “nos professores a mais“ sem a devida explicação: por exemplo, cada candidato, até do quadro, podia apresentar candidaturas a várias disciplinas; ou seja, 40 mil não colocações podiam ser apenas 10 mil pessoas.
Sabemos que as causas da falta de professores incluem as “novas políticas de gestão pública” iniciadas nos EUA e RU (anos 80 do século XX) e lançadas na Europa dez anos depois. Foram aplicadas entre nós na primeira década do milénio e mantêm-se.
Mas houve um contributo de quem não lecciona no ensino não superior; até de professores. Aliás, um técnico da Portugal Telecom, em 2006, indignou-se com o discurso “anti-professor e de alergia à escola” da generalidade dos professores dos serviços centrais do ME. Noutro exemplo que convém ter em conta, assistiu-se a uma tensão entre o discurso de um dirigente escolar que defendeu (no Público de 16 de Abril de 2022) a sobrecarga dos horários com mais turmas, e das turmas com mais alunos, como solução para a falta de professores e as veementes discordâncias sugerindo a atribuição de 1 ou 2 turmas aos dirigentes que não leccionam (serão 2 a 3 milhares).
Por outro lado, um estudo (2022) da Fundação Belmiro de Azevedo concluiu da “falta de experiência na área de cerca de um terço dos formadores dos professores do básico e secundário” o que explicará a infernal tecnocracia didáctica que terá contribuído para a perda de atractividade dessa formação e para o desvario na formação contínua.
Discuta-se então soluções de curto e médio prazos que oxigenem a atmosfera:
1. Eliminar as cotas e as vagas na avaliação e abrir um concurso extraordinário;
2. Considerar sempre como horários completos as colocações com 14 ou mais horas e o tempo de serviço para a segurança social dos professores contratados;
3. As habilitações, a profissionalização, o acesso aos quadros e a estrutura da carreira devem recuar para algo semelhante ao que acontecia há duas décadas;
4. Incluir os horários com 6 ou mais horas nos concursos por mobilidade interna, regressar à recuperação do tempo de serviço e eliminar a componente não lectiva a partir dos 55 anos de idade;
5. Concretizar, até 2030 e como avaliação da municipalização, 18 alunos por turma no pré-escolar e no primeiro ciclo, 20 nos 2º e 3º ciclos e 22 no secundário;
6. Recuperar, dos seguintes modos, a gestão democrática de proximidade a pensar também na descentralização:
a. um conselho geral por concelho, em vez de um por agrupamento ou escola, e uma agência municipal, em rede com as escolas, para os assuntos administrativos;
b. um conselho directivo (não apenas executivo e eleito como o que existiu até 2009) e um pedagógico em cada escola com 2º e 3º ciclos e ensino secundário;
c. um delegado escolar concelhio, sediado no município, eleito pelas escolas do pré-escolar e do 1º ciclo, um coordenador eleito em cada uma e um conselho pedagógico concelhio destes níveis de ensino.
Por fim, o primeiro-ministro declarou que o que conta é a redução de 13% para 5,6% no grupo dos 18 aos 24 anos inscrito no IEFP. É óbvio que é fundamental reduzir o abandono escolar, mas não é o único indicador que importa. Aliás, o ministro da Educação declarou (5 de Abril de 2022) que “as escolas devem ser laboratórios de democracia e oficinas de paz”; acrescente-se um para todos: alunos e profissionais da educação. É que, e como se comprova, a escola é, há década e meia, um laboratório de exclusão dos professores. É, portanto, crucial que se cuide dos que existem, também para que quem testa a possibilidade não se confronte com um clima de desconfiança, insanidade e arbitrariedade, e entre não só em regime de fuga como desaconselhe o exercício.
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Abr 24 2022
Os normais estúpidos do Estado Novo – João Costa
Deve o povo aprender a ler? Será vantajoso ou prejudicial para o Estado ter trabalhadores e camponeses que saibam ler? Sejamos claros, o bem da sociedade determina que o saber do povo não exceda o necessário ao exercício das suas funções quando basta colocar os olhos uma vez, e uma vez só, fora da rotina diária para jamais voltar a dedicar-se corajosa e pacientemente ao seu dever.
Estas palavras não são minhas mas antes uma introdução, e nesta introdução a súmula, ao modo de pensar das classes dirigentes em pleno Estado Novo.
“Ensinar o povo a ler? Para ler o quê?”, perguntava-se António Ferro, Director do Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo de António Salazar e responsável pela ortodoxia pedagógica deste Portugal. Afinal, a educação não faz ninguém feliz e a inteligência é um veneno.
A pergunta, ignóbil, tem uma resposta clara: para podermos ler vezes e vezes sem conta e muitos anos mais tarde sobre estas e outras barbaridades. Para que não mais regressemos a estes tempos.
Deve o povo aprender? Sim, mas apenas em função das necessidades do Estado. Até porque “os trabalhadores e as criadas de servir quando entregues a si mesmos, coitados, têm muita dificuldade em pensar”.
E porque o povo tem muita dificuldade em pensar, divida-se a população da seguinte maneira: 8% são ineducáveis, ou seja não se pode fazer nada por eles; 15% são normais estúpidos, sendo preciso muito trabalho para conseguir deles alguma coisa de vez em quando; 60% têm inteligência média e só 2% são notáveis.
Faltam-me as palavras para descrever a arrogância, a sobranceria, a altivez e presunção, para não dizer o enfado de quem assim nos olha, como se fosse seu, e era, o direito divino da taxonomia e Lineu às voltas no túmulo.
Se juntarmos 25% da população entre ineducáveis e normais estúpidos à diminuta vontade política vigente, facilmente compreendemos o porquê da instrução por demais básica salazarista: 3 anos para as raparigas e 4 anos para os rapazes.
Construiu-se assim uma sociedade temente e ignorante, para sempre pouco instruída, crente e facilmente manipulável e pouco ou nada interessada em questionar as perpétuas elites dirigentes.
A revolução? Foi feita por autodidactas cujas casas estão forradas de livros de alto a baixo, bibliotecas inteiras erguidas longe dos olhares dos bufos e da polícia política e tantas vezes à custa da liberdade e da vida apenas porque se quer ler e ler, meus caros, aprender, interrogar, apontar, ler é um sarilho.
E se hoje podemos ler, não devemos ler. Entorpecidos entre futebóis, a indignação cacofónica dos telejornais e a ilusão das redes sociais, passamos pela vida a gastar as pontas dos dedos nos ecrãs e em 12 anos de escola não houve um professor que me falasse de Abril.
Parece que nos esquecemos: de Abril e de ler. E quando assim é, o perigo de outros tempos está sempre à espreita.
Em nome da liberdade, neste 25 de Abril, 48 anos depois da Ditadura mas ainda tão perto da Ditadura, peguem num livro, abram um livro, partilhem, mostrem um livro aos outros em redor e leiam.
Por Abril.
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