Os normais estúpidos do Estado Novo – João Costa

 

Deve o povo aprender a ler? Será vantajoso ou prejudicial para o Estado ter trabalhadores e camponeses que saibam ler? Sejamos claros, o bem da sociedade determina que o saber do povo não exceda o necessário ao exercício das suas funções quando basta colocar os olhos uma vez, e uma vez só, fora da rotina diária para jamais voltar a dedicar-se corajosa e pacientemente ao seu dever.
Estas palavras não são minhas mas antes uma introdução, e nesta introdução a súmula, ao modo de pensar das classes dirigentes em pleno Estado Novo.
“Ensinar o povo a ler? Para ler o quê?”, perguntava-se António Ferro, Director do Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo de António Salazar e responsável pela ortodoxia pedagógica deste Portugal. Afinal, a educação não faz ninguém feliz e a inteligência é um veneno.
A pergunta, ignóbil, tem uma resposta clara: para podermos ler vezes e vezes sem conta e muitos anos mais tarde sobre estas e outras barbaridades. Para que não mais regressemos a estes tempos.
Deve o povo aprender? Sim, mas apenas em função das necessidades do Estado. Até porque “os trabalhadores e as criadas de servir quando entregues a si mesmos, coitados, têm muita dificuldade em pensar”.
E porque o povo tem muita dificuldade em pensar, divida-se a população da seguinte maneira: 8% são ineducáveis, ou seja não se pode fazer nada por eles; 15% são normais estúpidos, sendo preciso muito trabalho para conseguir deles alguma coisa de vez em quando; 60% têm inteligência média e só 2% são notáveis.
Faltam-me as palavras para descrever a arrogância, a sobranceria, a altivez e presunção, para não dizer o enfado de quem assim nos olha, como se fosse seu, e era, o direito divino da taxonomia e Lineu às voltas no túmulo.
Se juntarmos 25% da população entre ineducáveis e normais estúpidos à diminuta vontade política vigente, facilmente compreendemos o porquê da instrução por demais básica salazarista: 3 anos para as raparigas e 4 anos para os rapazes.
Construiu-se assim uma sociedade temente e ignorante, para sempre pouco instruída, crente e facilmente manipulável e pouco ou nada interessada em questionar as perpétuas elites dirigentes.
A revolução? Foi feita por autodidactas cujas casas estão forradas de livros de alto a baixo, bibliotecas inteiras erguidas longe dos olhares dos bufos e da polícia política e tantas vezes à custa da liberdade e da vida apenas porque se quer ler e ler, meus caros, aprender, interrogar, apontar, ler é um sarilho.
E se hoje podemos ler, não devemos ler. Entorpecidos entre futebóis, a indignação cacofónica dos telejornais e a ilusão das redes sociais, passamos pela vida a gastar as pontas dos dedos nos ecrãs e em 12 anos de escola não houve um professor que me falasse de Abril.
Parece que nos esquecemos: de Abril e de ler. E quando assim é, o perigo de outros tempos está sempre à espreita.
Em nome da liberdade, neste 25 de Abril, 48 anos depois da Ditadura mas ainda tão perto da Ditadura, peguem num livro, abram um livro, partilhem, mostrem um livro aos outros em redor e leiam.
Por Abril.

Link permanente para este artigo: https://www.arlindovsky.net/2022/04/os-normais-estupidos-do-estado-novo-joao-costa/

11 comentários

Passar directamente para o formulário dos comentários,

    • Toni on 24 de Abril de 2022 at 10:29
    • Responder

    25 DE ABRIL PARA SEMPRE !!!

    • Andrea on 24 de Abril de 2022 at 10:47
    • Responder

    Obrigada, Rui.

  1. 25 de abril de 74, passado, “não sei nem quero saber”!!!!!

  2. Muito obrigado. Alguma lista de sugestões?
    “Dicionário de Valores”, José Pacheco, São Paulo, 2012
    “Formazione dell’uomo” e “Educazione e Pace”, Maria Montessori, Milão, 1949
    Há boas traduções no Rio de Janeiro, já neste século
    “Animal Farm: A Fairy Story”, George Orwell, Londres, 1945. Lamento a sua ausência do “plano de leitura”, para adolescentes com mais de 4 anos de inglês.

    1. Passado????
      “Não sei nem quero saber”, maria de lurdes rodrigues.

  3. Qual é então o “compromisso com o futuro”, a ” real contribuição para o progresso” que o faz mover?
    Mikhail Sergeyevich Gorbachev tem pouco tempo e o Prof. António Guterres não teve encontro com ele.

    • maria on 24 de Abril de 2022 at 13:22
    • Responder

    Viva o 25 de Abril em Traseiras

    ” (…) por causa das tretas e das manias do sr. António Ferro e do sr. Salazar vamos celebrar a preceito o 25A. Mas não vamos medalhar todo o bicho-careta , como faz o sr. Marcelo. Não! Ficaremos por umas menções honrosa, e poucas, porque as quotas não nos permitem mais. Podem consultar a lista e respectivas fundamentações, tudo afixado na porta da venda” :

    1- A Rosalina : por pedir a MpD (unha encravada) para outro Ajuntamento, muito contribuindo para a paz no Conselho Pedagógico, nas outras reuniões e na sala dos professores;
    2- A Joaquina : por, no pico da pandemia, ter desinfectado diariamente a venda com litros de aguardente ;
    3- O Nora : pela exemplar assiduidade e pontualidade no mata-bicho .O primeiro ,manhã cedo, a entrar na venda. E nunca faltou nos 365 dias do ano! “

    • maria on 24 de Abril de 2022 at 13:27
    • Responder

    Nota: organização dos festejos e escolha dos galardoados a cargo da Junta, na pessoa do seu incansável Presidente

  4. são os anormais espertalhões do Estado Socialista

    • Salaz on 24 de Abril de 2022 at 23:54
    • Responder

    O autor do texto evocou o nome de Salaz assim sem mais nem menos.
    Quando falar em Salaz é seu dever supremo bater de imediato a pala e ficar em sentido durante uma hora.

    • M.E. on 26 de Abril de 2022 at 14:46
    • Responder

    Ainda a agitar o papão de Salazar, após mais de 50 anos. A actual corruptocracia é que é boa e pura! 🙂

Deixe um comentário

Your email address will not be published.

WP2Social Auto Publish Powered By : XYZScripts.com
Seguir

Recebe os novos artigos no teu email

Junta-te a outros seguidores: