As 34 sombras da minha docência 

Bom, eu detestava aula do 7º G até precisar de fotocópias, assim, “tipo”, para ontem… Então, decidi que o 7ºG ganhava o segundo lugar e a Reprografia o primeiro. Tem uma bruxa (Ná! Bruxa até é um nome bem simpático!), aliás um grifo asqueroso (ainda é demasiado injusto) que me trata de modo arrepiante:

– Bom dia, precisava de 55 cópias para amanhã de manhã, se faz favor.

– O quê? Mas julga que eu sou alguma máquina, é impossível! Impossível! Estou aqui sozinha e não tenho tempo para tudo, devia ter deixado isso mais cedo…

(Tento interromper o arrulhar nervoso)

–  Mas são só 55 cópias, não pensei…

– Não pensou, pois, nunca pensam! Chegam aqui e querem tudo feito à medida, como os sapatos! É impossível, eu tenho…, está a ver? (aponta o dedinho irritante para uma pilha de papéis suspeita) Tenho um trabalho para entregar hoje, isto é demais, tenho mais que fazer! (Continua a argumentar escabrosamente, quando estou prestes a desistir)

– Pronto, deixe estar, não imaginei… (rápida reformulação da planificação: net off, datashow não funciona, no copies, o que sobra?…PENSA DEPRESSA, PENSA DEPRESSSA!!!).

Sou interrompida pela voz arrastada e pesarosa do grifo da reprografia:

– Ora, deixe lá, deixe lá, eu é que sei o que sofro com isto, eu é que sei, agora 55 cópias, acha que é assim sem mais nem menos?

Deixo-lhe, temerosamente, os exemplares e preparo-me para vir embora com um obrigado e boa tarde suspensos entre tanta conversa desfiada. Subitamente, esta estranha admoestação é interrompida com a chegada de uma professora, velha na “casa”:

– Olá, boa tarde, doutora! Como foi esse fim-de-semana? E os seus meninos?… 60 cópias para logo? Com certeza, dê-me cá que ficam já feitas!

Sombra

Sinto-me extremamente estúpida. Não, abaixo de estúpida… entupida. É isso, sinto-me entupida pela minha miserável condição de caloira na escola. Confesso à Lurdes a cena que se passou (a Lurdes é a minha colega mais próxima, tem só 12 horas e está de passagem, tal como eu) e ela riposta-me com uma situação similar; a falsa ruiva ouve-nos (outra provisoriazeca) e repete as injúrias que lhe foram dirigidas na semana anterior, o Hércules (contratado de Biologia) confessa-se, igualmente tramado por uma cena do estilo.

Em reunião de grupo, alerto para o sucedido revelando-me “profundamente descontente com a falta de profissionalismo revelada”; que é como quem diz que não se admite que uns sejam primos e outros enteados (mas isso eu só pensei, não repeti).

–  Ó colegaaaa….

(Mau, se começa com este paternalismo…)

–  Ó querida (porque será que percebo logo que isto vai correr mal já a seguir?…), temos de desculpar a D. Conceição…

(o quê? Esse abutre draculesco tem nome?)

– Ela já está cá desde a fundação da escola!

(Uma loira oxigenada interrompe para reforçar o irreforçável)

– É bem verdade, desde a fundação!

– Estima-nos muito e mima-nos, mas, de início, fomos todas tratadas…

(Como merda?)

– … com aspereza! São feitios, é uma questão de feitios!

Olho em redor… . Estou rodeada de cabeças bamboleantes que acenam como zombies, assustadoramente em coro. Enterro-me na cadeira e afogo-me no silêncio. Recordo, apenas, o primeiro dia em que entrei nesta escola, cheia de felicidade por ter ficado colocada, repleta de energia para começar a trabalhar, superada a angústia dos erros e da espera de um concurso desumano e miserável.

Devia ter percebido, logo à entrada, que este lugar era de uma negrura cerrada. Sobretudo, depois de me sentar no local errado, na sala de professores, quando ocupei uma mesa, enquanto organizava a papelada do costume, sem adivinhar que cada cadeira ostentava um nome invisível. Tão invisível como eu, que fui completamente ignorada por quem me rodeou, conversando e rindo – “Cá estamos de regresso, não é? Ficaste com que turma?… Excelentes! De manhã, é claro, de manhã.” Pois, para nós sobram sempre os G’s, os F’s que ninguém quer, mas que dão tanta autonomia e independência a estas escolas.

Recordo-me de ver uma colega mais velha, com um sorriso estupendo e surpreendente, vir na minha direção e proferir ironicamente:

– A colega desculpe, mas vai ter de mudar de lugar, pois esta mesa está ocupada pelo nosso grupo, vê as pastinhas nas cadeiras?

Remeti-me à minha insignificância e, com um sorriso amargo, olhei em redor, dirigindo-me para a segunda área da sala, onde dois sofás absolutamente desconfortáveis acomodavam os outros intrusos recém-chegados e silenciosos.

sombra 1Foi assim que percebi que o ambiente nesta escola não resulta apenas das turmas difíceis, mas também do ar que lá dentro se respira.

Sobreviverei eu à sala de professores, à reprografia, ao 7ºG, ao F, ao H, aos 150 alunos que me calharam na sorte, aos desígnios de mais um concurso injusto que se avizinha?

Provavelmente sim, pois sou de uma casta de professores já velha no mercado. E que não tem alternativa, senão aguentar tudo isto…

A questão final, essa sim, é saber o que sobreviverá dentro mim no final de mais um ano, simplesmente, atroz.

 

To be continued…

 

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20 comentários

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    • maaps on 2 de Março de 2015 at 14:35
    • Responder

    Como me revejo neste tipo de situações…. Quase me atrevia a adivinhar a(s) Escola(s) onde isto se passou!

    • Ricardo on 2 de Março de 2015 at 14:39
    • Responder

    Ora, o que deveria ter feito, era ter voltado atrás e não encolher-se, teria falado para a sra da reprografia fazendo-lhe ver que a outra professora não é mais do que ela e que ela deveria tirar as fotocópias, se ela continuasse com a morder as palavras que dizia aí era soltar-lhe os cães de uma forma delicada mas ao mesmo tempo forte!

      • desalinhada on 2 de Março de 2015 at 15:39
      • Responder

      Concordo. Não devemos ficar calados! Eu já vivi situações idênticas! Nunca me calei. A escola é de todos. Relativamente aos “restos”( vários níveis, turmas piores etc etc), uma doutora do quadro chegou a dizer-me “eu também já andei assim”. Pois, nessa altura andou assim (contratada explorada) 3 ou 4 anos…. eu ando há 19! Têm só um, dois níveis e são as que mais se queixam!!! Quantos às cadeiras e as mesas, só serão delas se as trouxerem de casa!!!!
      Mas independentemente disso é uma questão de formação/educação.
      A senhora da reprografia devia ser advertida… podia a partir daí ter de entregar sempre os testes 48 horas antes, mas esto tipo de atitudes são intoleráveis.
      Enfim, tanta coisa havia a dizer… uma escola melhor, faz-se com pessoas melhores!!!

    • profpt on 2 de Março de 2015 at 14:56
    • Responder

    Isto passa-se em muitas escolas, infelizmente! As direções sabem quem são as cadeiras que já pertencem à mobília e não se vão chatear por causa de alguém que “está de passagem”. Como já eu ouvi, a propósito: “Mas nas outras escolas também é assim, não é?” Portanto, é mais um daqueles fenómenos culturais que só lá vai com a extinção destas espécimes nocivas ao sistema. Não interpretar mal as primeiras aspas, por favor!

    • mocho4 on 2 de Março de 2015 at 15:23
    • Responder

    nesse aspeto nunca tive razões de queixa. existem umas capelinhas é verdade mas já sabiam o que lhes acontecia. na minha escola atual isso nem se coloca. enviamos por mail a funcionária tira sem problemas e rapidamente. e 55 cópias nem 2 minutos demora.
    nos meus tempos antigos passei por uma escola de elite. Aí era um pouco diferente. estava a fazer estágio. Tinhamos a sala dos profs e a sala dos outros. Sem problemas… estavamos melhor. Mudei na altura de carro. isto lá em 1990. Tinha um opel corsa comprei um Fiat tempra aquele todos moderno parecia um avião com as luzinhas. o director um dia disse-me . Fez bem Sabe é importante que professor mostre que tem capacidade , um carrro melhorzito. A imagem é importante. E deu-me os parabéns pela troca de carro. Acho que passei a ser considerado professor. Foi a única

      • desalinhada on 2 de Março de 2015 at 15:30
      • Responder

      O que um me ri! Esse diretor deve ser muito muito muito competente. Que carro tem?

        • mocho4 on 2 de Março de 2015 at 15:43
        • Responder

        era em 90. Já não me lembra. Mas depois fez carreira nas instituições.. cae, drec… câmara…

        a escola era conhecida como a Universidade de Viseu. Era um liceu de elite. tinham esses tiques mas depois as coisas até andavam. Mas terá sido a única onde essas questões dos novos eram vistas assim de uma forma especial

          • M on 3 de Março de 2015 at 12:25

          A bela da escolinha amarela “a escola mais pública mais privada do país”!! Também estagiei lá, mas em 2013, e deve dizer que as manias de superioridade se mantêm! Incrível! Também há mesinhas reservadas e os olhares de alto abaixo que examinam minuciosamente a roupa que se veste?! Oh senhores! Quanto à escola, muita parra e pouca uva!

  1. Nem quero acreditar naquilo que li. Já trabalho há 30 e tal anos e nunca vi nada de semelhante! Na minha escola é perfeitamente ao contrário. Os novos são super bem recebidos .

    • Mónica C. on 2 de Março de 2015 at 16:16
    • Responder

    Também gosto daquela frase maravilhosa ” É professora ou é contratada???”… Enfim…

  2. Na minha escola não há funcionária na reprografia. Os professores têm um plafond de cópias e são eles que as tiram. (qualquer dia limpamos as salas…). Quanto aos mais novos ficarem com os
    piores horários e turmas e os mais velhos não…a sério? Tenho 25 anos de carreira (sou do quadro, mas já fui contratada, migrante pelo país, QZP e do quadro a 100Km de casa!) e atualmente tenho 8 turmas, (com 3 cursos vocacionais maravilhosos!!!!), 6 níveis, 1 apoio e leciono em duas escolas do agrupamento. Conheço muitos contratados com melhor sorte.

    Na minha escola adoramos malta nova. De um modo geral são dinâmicos e trazem ideias novas. Muitos colegas, depois de saírem da escola, visitam-nos na ceia de Natal e outras atividades intercalares. É a prova do quanto se sentem “em casa”.

    • Maria do Mar on 2 de Março de 2015 at 17:12
    • Responder

    Isto acontece em quase todas as escolas do continente e dos arquipélagos. Estes professores consideram que antiguidade é um posto e que mandam na escola. Acham que os contratados já nascem ensinados porque todas as escolas são iguais, para eles. Já vou em 14 escolas e todas elas foram diferentes. Mas em todas elas encontrei colegas que a única coisa que fizeram foi dificultar-me a vida. Muitas vezes digo, que o que me custa não são os alunos, mas sim a antipatia dos colegas mais velhos que não sabem receber. O mesmo se passa com os funcionários… Mas o que podemos fazer? Se falamos muito somos postos de lado na avaliação. E olhem que eu ainda tenho aulas assistidas… Imaginem onde estou…
    Resumindo, é uma classe que está a sofrer na atualidade por muitas regalias dadas, mas que nós nunca as vamos ter.

      • STRESSADA on 2 de Março de 2015 at 19:36
      • Responder

      COMO HÃO-DE RESPEITAR OS PROFESSORES CONTRATADOS SE O MINISTRO DA EDUCAÇÃO É O N.º 1 A FALTAR-NOS AO RESPEITO. SOMOS MAL VISTOS, SOMOS OS COITADOS, SOMOS OS BURROS COM QUEM VOLTA E MEIA O PAÍS GOZA E BRINCA: POR CAUSA DA AVALIAÇÃO DOCENTE (AI TU TENS N QUERES SER AVALIADA?); POR CAUSA DA PACC (TENS MEDO DE FAZER UMA PROVA?); POR CAUSA DA ELIMINAÇÃO DE HORÁRIOS (AI N TIVESTE COLOCAÇÃO ESTE ANO, MEU AMIGO, TENS DE FAZER OUTRA COISA); POR CAUSA DAS ESTRATEGIAS INVENTARIADAS PELOS DIRETORES P DAR COLOCAÇÃO AOS AMIGOS, TUDO PERMITIDO PELA AUTONOMIA DADA ÀS ESCOLAS.
      COMO VAMOS SER RESPEITADOS?

        • !!!!! on 2 de Março de 2015 at 20:09
        • Responder

        Concordo!

    • Rui Cardoso on 2 de Março de 2015 at 21:23
    • Responder

    Infelizmente isto acontece. A mim a única “funcionária” que algum dia se armou em esperta foi uma chefe de secretaria a quem eu, imediatamente e graciosamente, ameacei com um processo disciplinar. Em relação aos colegas e às suas cadeiras até hoje nenhum teve a coragem de me dizer fosse o que fosse, pois no dia que um arranjar essa coragem vai perde-la da mesma forma que a ganhou, uma vez que saiba eu, as cadeiras são da escola, logo do Estado, logo dos meus impostos, resumindo com um sorriso nos lábios sei ser desagradável com quem o é comigo… Triste situação de quem tem de recorrer a antipatia para não se ver humilhado… mas isso não admito a ninguém, pois também não o faço aos outros.

  3. Sim, este tipo de pessoas continua a existir por esse nosso país. Ainda este ano ouvi algumas destas coisas. Quando me sinto forte enfrento tudo, mas sempre com respeito, sem descer ao nível dessa genteca de meia leca.
    Também estou desgastada de ter as turmas F e G e os vocacionais e também oiço “Também passei por isso muito tempo, também me desgastei”. Quando pergunto por quanto tempo, o período mais longo que ouvi foi 6 anos. Bem me parecia… aquela gente de meia leca não estaria de aparência impecável, nem se preocuparia em reservar lugar se estivessem verdadeiramente desgastadas, por que nesse caso não viveriam, sobreviveriam.

  4. Até que enfim alguém tem a coragem de revelar o que se passa nas escolas, de revelar qual o ambiente que se vive numa sala de professores e a forma como os ‘forasteiros’ são tratados pelos professores ‘da casa’.
    E que tal terem professores a perseguir-vos e a fazerem-vos a ‘vida negra’, apenas porque se é ‘novo’ na escola?! Falta de carácter, maldade, mesquinhez e…pior…bem pior. No final, contudo, fica sempre o sentimento de que aquela ‘gente’ (professores ‘da casa’) não passam de uma ‘cambada’, provavelmente com muitas frustrações e que vê nos ‘outros’ uma oportunidade de descarregarem o seu ‘veneno’.
    O mais curioso ainda é ver que são mais incompetentes e o seu ‘saber’ reduz-se ao que reproduzem dos manuais, porque mais do que isso é pedir muito…

    • gerimbeco . on 3 de Março de 2015 at 14:02
    • Responder

    Parabéns pelo texto!
    A imagem que mostra é a de uma realidade grotesca que existe numa larga maioria de escolas em Portugal. Muitas destas “pessoas” “evoluíram” e agora são presidentes de câmara, vereadores, deputados, detentores de cargos bem pagos e sonantes, mas sem valor. TODOS eles (e elas, porque aqui a igualdade de géneros existe!), formam um grupo bastante homogéneo naquilo que conseguem e sabem fazer: NADA. Gostam de ostentar um estatuto que adquiriram ao longo de anos a compactuar com todo o tipo de sacanices e ilegalidades, só para terem o seu futuro acautelado.
    No fundo, são o retrato das classes dirigentes do país, com deputados, ministros e outros que tais a terem uma folha de serviço “imaculada”.

    • MJoão on 3 de Março de 2015 at 14:26
    • Responder

    Foge, estas “coisas” ainda se usam? Fez-me lembrar outra, mas com uns 30 anos… Ó colega, desculpe-me, mas esse cadeirão é do Dr………….

    • aquele on 3 de Março de 2015 at 16:48
    • Responder

    Passo exactamente pelo mesmo na ES D Maria II em Braga…

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