Aviso nº 2505-B/2015.
As folhas ainda vêm frescas da impressora. Como um precioso pacotinho volumoso, observo-as silenciosamente. São apenas papéis, então, por que razão tenho o coração na garganta, a pulsação acelerada e um suor prestes a aflorar-me à pele?
“Declaro abertos os concursos interno e externo”. Assim, logo na entrada, começam as palavras a devorar-me como fogo. Cada linha, cada letra é minuciosamente observada à lupa, como se procurasse um pequeno furo por onde seja possível escapulir dali para fora.
Mas em cada página, um nó no estômago, um vómito contido e as lágrimas a susterem-se a custo. A minha vida está aqui plasmada, esventradas as entranhas do meu ser nestas herméticas folhas. De cada linha escorre o sal que me rasga e queima. E o meu futuro, esmagado sob o peso do feroz papel, desespera, sabendo-me perdida.
Então, subitamente, identifico-me com o banal pacote de leite: validade limitada, o meu prazo chegou antecipadamente ao fim. Não a 31 de agosto, como está escrito no contrato, mas desde o preciso momento em que seguro estas folhas na mão.
Não há qualquer fonética de vida num parágrafo. E cada ponto final estrangula-me e sacrifica-me. Como se um veneno, brando e fatal, se imiscuísse nas minhas pálpebras até sangrarem, obrigando-me a cerrar os olhos em agonia.
Morre-se lentamente nestas páginas de cetim.
O rosto dos que sorriem, aqueles a quem, inesperadamente, foi dada a minha vez, cobrem-me de lama. E assim fico, petrificada, comida viva por cada frase, sucumbindo à dor carnívora destas palavras amorfas, como um pulmão apodrecido, que um qualquer sapiente legislador desenhou num dourado escritório com a janela aberta para o sol.
Um tremor gélido percorre-me a coluna. Dezoito anos depois, o que me sobra? Quilómetros, rostos, lugares, chegadas, despedidas, sonhos desfeitos: apenas presságios de um fim atroz. Onde pára o meu futuro?
Onde é possível sonhar-me inteira sem rasteiras oblíquas que me destruam a cada passo? Eu sou a minha profissão e a minha profissão é apenas isto – um monte de folhas a fazer-me perder teto e chão.
Sinto-me extenuada, exausta, despejada dos meus próprios sonhos. Um farrapo de quem outrora fui. Seca-se-me a força secreta e selvagem que tanto tempo transportei no meu peito em flor, e um cansaço absurdo apodera-se de mim.
A vontade de adormecer esta dor é tão grande. Este país magoa-me tanto, tanto que, juro, era capaz de rasgar os pulsos aqui e agora, em cima destas folhas brancas, até a hemoglobina plantar cravos rubros no lugar das carnívoras palavras negras , trazendo-me de volta a vida e o luar.