Os inspectores estão à porta – João André Costa

 

Os inspectores estão à porta, não, os inspectores estão na recepção, já estão na recepção e quando os inspectores já estão na recepção a primeira medida, tal como para todos quantos visitam a escola, é a confirmação da identidade para bem estar das crianças e restante comunidade escolar.
E nada como presumir um ataque directo à escola até porque num ataque directo à escola ninguém se vai preocupar em entrar pela recepção enquanto se trocam bons-dias e se aceita um chá, pois claro, um chá, “two sugars and milk, please”.
De resto, o recepcionista sofre de lumbago e está a anos-luz de um cinturão negro em jiu jitsu para o caso de haver problemas.
Voltando aos inspectores e ao chá – de resto servido em hectolitros desde tenra idade às crianças deste país e daí a sua preponderância para acalmar até os mais acirrados estados de espírito – o estado de humor do inspetor-chefe permite desde logo avaliar a montanha-russa das próximas 48 horas, sim, 48 horas, e se me perguntarem prefiro os inspectores carrancudos porque pelo menos já se sabe ao que vêm.
Com Covid ou sem Covid e agora pós-Covid, estamos há anos a preparar-nos para esta inspecção, os planos curriculares, os apoios curriculares, o contexto escolar, a demografia escolar e o plano educativo correspondente, as avaliações e progressão dos alunos, o absentismo escolar e as medidas tomadas contra o mesmo, o bem-estar dos alunos mas nem por isso dos professores, as almofadas para as crianças se sentarem no recreio (sim, leram bem), uma casa de banho por género (sim, leram bem outra vez) entre trans, intersexo, pansexuais, espíritos-duplos, transespécie e tantos outros e portanto casas de banho não faltam – faltam sim os alunos para as ditas mas tudo em nome da inclusão e ainda há pouco li sobre uma escola onde uma aluna se identifica e veste como um gato – e por falar em casa de banho as indicações para a dita traduzidas nas paredes da escola em 23 línguas e graças a Deus temos um professor de Hong Kong que sabe escrever em mandarim e entretanto o inspector-chefe já está a perguntar a uma professora sobre o plano de emergência e a professora emperrou.
Uma resposta mal dada, basta uma resposta mal dada para de imediato deitar tudo a perder, anos de trabalho, uma carreira, a reputação da escola e a presunção de culpa, sempre a presunção de culpa ao invés de mais apoios, a acusação como incremento aos cortes no orçamento escolar, o juízo por cima do congelamento das carreiras e a impossibilidade de uma inspecção incólume.
E o mais fácil é ter uma avaliação negativa quando uma criança tem uma reacção alérgica a uma cenoura entre um exantema e a ausência do correspondente plano de acção e primeiros socorros.
Não somos uma escola, somos um hospital, somos a segurança social, o banco alimentar, o centro de emprego de alunos e respectivos pais, somos a polícia e somos os bombeiros e já agora professores mas quando falta tudo não podemos fazer tudo, não podemos ser o tudo e o todo se o tudo e o todo é Sua Majestade e Deus acima de Sua Majestade.
Somos a vontade magnânima de um inspector na forma de uma palavra só e numa palavra só depositamos as nossas vidas, o nosso emprego, a casa, a família, o futuro, tudo no vermelho digo eu enquanto a esfera gira e gira e gira e gira.
Não trabalhasses com crianças e para as crianças e talvez não fosse assim e de certeza não seria assim quando mais nenhuma profissão ou carreira tem esta espada por cima e para sempre pendente.
Mas o que dizer se também nós fomos e somos crianças, as mesmas crianças, conhecemo-las melhor que ninguém pois a isso nos propusemos aquando deste juramento de Hipócrates e por conseguinte porquê colocá-las em causa, porquê esta ausência de fé, porquê esta falta de ajuda?
Por ser o propósito das inspecções a privatização das escolas com avaliação negativa desde a demissão da Direcção passando pela reestruturação de contratos de trabalho e redução salarial até à venda de terrenos escolares para construção.
É política. É a escola pública como uma escola de segunda categoria a formar cidadãos de segunda categoria. É a manutenção do status quo.
Mas é também o meu emprego, o único alcançado e a dois mil quilómetros de casa.
Aparentemente, o sacrifício não chega, a vida despendida na escola não chega, a dedicação não chega e até prova em contrário somos todos culpados e assim são os professores, culpados de lutar contra um mundo cada vez mais desigual e por conseguinte um alvo a abater.
Já estamos habituados: de onde viemos também era assim. Ainda é.

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