O golpe
Boa parte dos professores angustiados por não conhecerem onde trabalharão no próximo ano, pais e alunos presos a exames finais e o país alvoroçado e deprimido pela quarta vaga pandémica constituíram um contexto emocional propício à execução, de fininho, do “golpe” perpetrado por um simples despacho, o n.º 6605-A/2021. Assim, a partir do próximo dia 1 de Setembro, todos os programas até agora em vigor, do 1º ao 12º ano, serão substituídos por “aprendizagens essenciais”, eufemismo para designar a mediocridade assassina da desconstrução curricular iniciada em 2015. Acresce o absurdo dessas “aprendizagens essenciais” serem obviamente indissociáveis dos programas … que o despacho anulou. Nunca assisti a uma alteração curricular desta magnitude, feita desta maneira. O menor denominador comum, do qual seria expectável que tentássemos afastar todos os alunos, passa a ser o Santo Gral para que devemos conduzir todos. Eis o desígnio da “escola inclusiva”, caritativamente grátis para quem não puder pagar ensino privado. Eis o que os Costas (o António e o João) prescrevem para o futuro dos nossos jovens, se outra coisa não sobrar de nós, senão submissão e conformismo.
A versão menos elaborada e mais redutora do paradigma ideológico chegou, autoritária, populista, para substituir a densidade dos vários saberes disciplinares pela superficialidade de uma cultura digital estupidificante e escravizante de professores e alunos, mas favorável ao império das multinacionais tecnológicas, que cada vez mais grudará os mais desfavorecidos às suas frágeis circunstâncias de partida.
O caso do programa de Matemática, alvo de tratamento autónomo, é paradigmático, neste contexto. Em 2018, via as decantadas “aprendizagens essenciais”, viu-se amputado de um quinto dos seus conteúdos, alguns dos quais críticos para a compreensão do que restou. E agora retoma a metodologia do “ensino pela descoberta”. Ora as propostas construtivistas, ditas “compreensivas” e assentes na “descoberta”, informadas por teorias disruptivas, têm décadas e são fósseis pedagógicos, que nunca solucionaram problemas. Outrossim, sempre que foram ensaiadas, deram desastre e retrocesso.
O que se está a construir é uma escola com cada vez menos conhecimento, conformada com medíocres “competências” e indigentes “aprendizagens essenciais”. Seja de esquerda ou de direita, algum cidadão racional e minimamente informado pode dar crédito a estes próceres da destruição da escola pública? Continuaremos a aceitar anúncios atrás de anúncios, que nada significam? Aceitaremos como pedagogia a simples alienação de docentes e discentes e obscenas intervenções administrativas, com o efeito imediato de dizer aos alunos que trabalhar, ler e estudar é simplesmente inútil? Permitiremos que se tome a igualdade de oportunidades por nivelamento por baixo, como se os pobres fossem estúpidos, enquanto os ricos fogem para as escolas privadas, das elites financeiras?
Uma democracia não pode aceitar a prevaricação continuada por parte de políticos e de políticas irresponsáveis e sem seriedade, que substituem a verdade pela mentira e acham que a inclusão supõe a exclusão do rigor e do conhecimento. Sem pudor, o monolitismo “alunocentrista”, que aprova passagens de ano com meia dúzia de negativas, vem neocolonizando a independência profissional dos docentes e o futuro dos estudantes.
O conhecimento, fruto do pensamento estruturado pelo estudo, que nunca dispensará na escola a intervenção presencial do professor, está a ser perigosamente subalternizado pela ideia reducionista de que pode ser substituído pelas torrentes de informação que jorram da Internet. Foi arrepiante ver (recente entrevista ao Expresso) como o próprio ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior ignora o elementar: uma aula teórica não serve para repetir a informação disponível em vários suportes; é antes uma fonte original de conhecimento, na medida em que analisa, questiona, problematiza e relativiza essa informação. Que nem sempre seja assim, é outra questão.
Já tínhamos vários e graves vazios provocados pela turbulência dos dois últimos anos lectivos. Junta-se-lhe, agora, uma autêntica terraplanagem de orientações curriculares estruturadas, servida pela subordinação mental provinciana a uma espécie de globalização digital da nossa Educação.
In Público de 21.7.21
5 comentários
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Na qualidade de professor, com mais de 40 anos de serviço a fazer sempre rigorosamente tudo o que me mandam fazer, aqui divulgo parte do texto que enviei aos responsáveis que me mandaram refazer todas as planificações das disciplinas e anos de escolaridade que leciono:
“Caro Coordenador e a quem for considerado por conveniente
Em reporte ao presente Despacho e apesar dos meus deveres profissionais me impedirem de intromissão em deliberações da Administração Educativa, não posso deixar de manifestar a minha perplexidade pelas mesmas quando verifico a sua ilegalidade e contrariedade, nos seguintes termos:
-Um Despacho não tem força de lei sobre um Decreto-Lei, apenas esclarece o teor e não o pode anular.
-O Despacho n.º 6605-A/2021, de 6 de julho é mais um documento governativo que regulamenta o Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho que não foi revogado, em que na alínea b) do seu artigo 3.º define descritivamente “Documentos Curriculares” onde constam explicitamente os documentos que pretensiosamente agora se entendem dever revogar nomeadamente “… os programas, metas, orientações, …“.
Assim, parece-me haver necessidade de sermos esclarecidos no trabalho a reformular com base na lei e não com base no conteúdo implícito de um Despacho que não refere explicitamente os documentos que pretende revogar, quando inclusivamente há manuais escolares que continuarão em vigência legal para além de 1/9/2021 e foram elaborados respeitando esses referenciais, isto para evitar continuarmos a ser sobrecarregados com repetido trabalho que deveria competir à Administração Educativa.”
Como sempre, não obtive qualquer resposta.
Como o objectivo é, deliberadamente, destruir a escola pública para favorecer privados, e como a democracia não parece estar a funcionar (ou não haverá oposição), mesmo tendo o Costa substituído a PGR equacionarei uma queixa-crime contra os mandantes e executores do golpe!…
O privado, o capital… tinham de ser os responsáveis, os culpados.
Já os geringonços socialistas, comunistas & companhia… não é nada com eles.
É assim, não é?
Excelente análise.
Subscrevo o conteúdo com a minha total concordância.
Também subscrevo Santana Castilho. Mas haverá mais a dizer.