A Lei da Cunha – Carlos Santos

Assaltado pela ideia de já ter visto de tudo, uma vez mais, iludi-me.
Se com o passar dos anos, as novas gerações têm vindo a apresentar um défice de valores impressionante, visível sobretudo do lado dos alunos, qual não é a minha surpresa ao verificar que o mesmo se tem vindo a observar da parte dos professores mais novos.
Nas escolas, mas também nas redes sociais, têm-se lido comentários desprezíveis de pessoas que têm a responsabilidade acrescida de formar as novas gerações. Contudo, a falta de vagas e a dificuldade em conseguir um lugar perto de casa tem propiciado a falta de discernimento nos professores, estando a atingir os menos velhos. Colegas de profissão com ânsia de sepultar outros ainda vivos referindo-se a eles dizendo “Estes velhos nunca mais morrem para dar o lugar aos outros”, põe a nu uma mentalidade cobiçosa. Sujeitos que, abertamente, pretendem legitimar a “cunha” como meio de queimar etapas, desalojar quem tem uma colocação e ficar com o seu lugar numa escola, desculpando esta aberração comportamental com o argumentário de que seria aceitável desde a qualidade do trabalho que viessem a desempenhar o justificasse (como se os outros também não tivessem valor; como se a obtenção de uma cunha, por si só, não representasse uma injustiça e uma deturpação da transparência, equidade e isenção). Lamentavelmente, estes são os mesmos que estão constantemente a criticar a classe política que facilmente corrompe e é corrompida arranjando “tachos” para familiares e amigos, mas que, depois, não se importam que se legalize um sistema de fraude moral na sua classe profissional, desde que sejam eles próprios os beneficiados.
Que um dos piores venenos da nossa sociedade – o compadrio – esteja enraizado desde sempre, já nós sabíamos. O que desconhecíamos é que houvesse professores que considerassem natural recorrer-se a esta ilicitude.
São pedantes que, provavelmente, acharão normal chegar a uma fila de espera e passar à frente de quem está ali a aguardar vez há mais tempo, por não quererem esperar pela sua vez e de se acharem mais do que os outros pelo simples facto de terem uma cunha; que consideram que, quem não tem uma cunha, que a arranje, sem se importar que isso seja indecente.
Mãos culpadas que não sentem remorsos, nem lhes pesa na consciência ficarem com os lugares de quem está posicionado à frente nas listas de graduação; colegas de profissão que acham que terem colocação longe do seu domicílio lhes dá legitimidade, por todos os meios, para tomarem de assalto aquilo que é pertença de outros; professores que pretendem roubar o lugar a colegas recorrendo a atos moralmente condenáveis, esquecem-se que esses mesmos colegas, cujo lugar de provimento eles tanto cobiçam (muitas vezes ainda longe do ideal), também tiveram de passar por aquilo pelo qual eles não querem passar. Professores com vinte, trinta ou mais anos de serviço, uns mais perto de casa e outros ainda com alguma instabilidade profissional, que durante décadas percorreram o país e fizeram imensos sacrifícios pessoais e familiares para, finalmente, poderem estar mais próximo das suas famílias, verem-se ultrapassados e serem-lhes retirados os lugares por alguém que considera que esse esforço é para os outros, não para si, é bem demonstrativo do baixo nível que invadiu a classe. Talvez isto ajude a explicar o motivo pelo qual haja professores que não se importem que a política invada as escolas e que estas sejam entregues às autarquias.
É difícil de conceber que os maiores inimigos da classe possam estar no meio das suas fileiras; que ao nosso lado possa estar o nosso carrasco; que o oportunismo, o desprezo e a desonestidade estejam materializados em pessoas que deveriam envergar um mínimo de ética incorruptível, mas que abraçam uma adulterada conceção de valores não olhando a meios para atingir os seus fins.
Não quero que chegue o dia em que tenha de assistir ao espetáculo abjeto de ver colegas a fugir com a vida dos outros nas mãos, obrigando-os a bater à sua porta a pedi-la de volta.
Mas, se calhar, em algum ponto temos estado a falhar, para estarmos a formar gerações deficitárias de valores éticos e morais.
Que as novas gerações desenhem pensamentos extremamente egoístas e egocêntricos que não conhecem deveres, apenas direitos, sejam mimadas, habituadas a não fazerem sacrifícios, a terem tudo facilitado e no imediato, não me surpreende nada. Porém, assistir a esta postura escabrosa no seio da classe docente, considero inaceitável e doentio, anunciando que se avizinham tempos perigosos.
Que a vida dos professores é difícil e instável, também não é novidade para ninguém. Mas isso não legitima que haja professores com uma mentalidade de cobiça que lhes turva a razão e a ética, que não se coíbem em prejudicar terceiros para conseguirem alcançar o que querem, nem que seja saqueando injustamente o que é pertença de outros por direito e por mérito. Sim, mérito, essa palavra que muitos desconhecem e outros preferem ignorar. Mérito alcançado por uma graduação profissional calculada com base na média de curso e no tempo de serviço.
Como poderemos, algum dia, aspirar a que haja uma classe unida quando começa a ficar contaminada por professores que olham para professores como obstáculos, como estorvos, como adversários, como inimigos a abater.
Mas a tutela, sábia e maleficamente, orquestrou este mal-estar e desunião ao propiciar instabilidade através da falta de vagas, itinerância constante e avaliação de desempenho viciada e adulterada com cotas.
Mas, em todo o caso, o que mais me atormenta, é aquilo que este género de pessoas possa transmitir a crianças e jovens em fase de formação de caráter. Indivíduos que desconhecem a importância do papel de professor em formar e inspirar a próxima geração. Pessoas que consideram normal o recurso à cunha para conseguirem ultrapassar outras, que valores poderão transmitir aos seus alunos e às novas gerações? A pensar deste modo, valorizarão e fomentarão nos seus alunos a importância do mérito e do esforço? Irão transmitir-lhes valores de ética, respeito, merecimento, solidariedade, correção, justiça e honestidade? Sinceramente, não me parece.
Criaturas com uma mentalidade destas, nem sequer deveriam ser professores.
Assim se vai percebendo como a ditadura e os bufos conseguiram fácil acolhimento, durante meio século, no seio desta sociedade.
Carlos Santos (longe de estar envelhecido e longe da estabilidade profissional; mas sempre longe de desrespeitar os colegas e o mérito profissional)

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17 comentários

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    • Isabel Sequeira on 4 de Julho de 2021 at 12:05
    • Responder

    Palavras sábias!

    • Eduardo on 4 de Julho de 2021 at 12:06
    • Responder

    Isto é algo que o ministério tem conseguido cavalgar em seu proveito, criando fossos, separando os professores dos pais e os professores uns dos outros.
    Infelizmente tem alguma razão, não generalizando em absoluto, mas as escolas tornaram-se campos de batalha nas quais cada um puxa.para si e apenas para si.
    Imaginemos agora o que será com a falta de professores e com a possibilidade de entrarem para o ensino pessoas sem as devidas qualificações.

    Pensei que tínhamos batido no fundo, mas cada vez me surpreendo mais.

    1. Concordo, Eduardo, que não devemos generalizar. Infelizmente, deparamo-nos com muitas situações que se enquadram no que Carlos Santos apresenta. Todavia, também as há em registo veterano. E tudo isto vem de muito longe. Recordemos os clássicos da nossa literatura que tão bem dão conta disto. Encontramos vários exemplos em Eça, E, mais atrás, em Soldado prático de Diogo do Couto. Deste fartar vilaneza temos muitos exemplos.
      É certo, porém, que as novas gerações, educadas pelas mais velhas, também os manifestam, quantas vezes de modo ostensivo e agressivamente. Cabe a cada um de nós não deixar cair em saco roto e saber enfrentá-las, quando a situação o requer. Em terra de cegos, quem tem olho é rei e é certo que a cunha, diria melhor, um sistema de proteção por “capelinhas” associada a este modelo de organização escolar e à iníqua ADD e respetivas quotas, propicia situações injustas. De quem é o interesse em que as coisas se mantenham assim, apesar de os principais intervenientes as denunciarem? Por que razão estes problemas não são evidentes nos sistemas educativos de outros países mais desenvolvidos?

    • Carla Duarte on 4 de Julho de 2021 at 12:39
    • Responder

    Bravo, mais um vez.
    Tudo o que tem escrito, transmite a mensagem daquilo que penso e sinto.
    Parabéns, colega!

    • Anabela Esteves on 4 de Julho de 2021 at 12:40
    • Responder

    Análise simplista e tendenciosa! Sempre houve professores mais velhos que usaram e abusaram de artimanhas e esquemas para “papar” os outros em proveito próprio. A mentalidade de cunha e compadrio não é recente. E pergunto: quem educou os professores “menos velhos”?

      • Mirtha on 4 de Julho de 2021 at 12:57
      • Responder

      Fascistas como os de hoje disfarçados de democratas… só que os de agora são mais refinados!!!

      1. Isso mesmo, Mirtha. Só te faltou avisar que quando alguém fala do grande Dr Salazar deve ficar em sentido e bater a pala durante 10 minutos.

      • Quando chegará o 25 de abril às escolas??? on 4 de Julho de 2021 at 13:07
      • Responder

      O compadrio e a cunha começam na nomeação do diretor e das direções, tudo feito em troca de favores e TRÁFICO de influências. Não resta, nos locais que formam os cidadãos (!!!!), um pingo de democracia, de justiça e de cidadania.
      Desde a FAMIGERADA mlr as escolas são antros dos piores vícios, onde até os adolescentes presentes no CG são iniciados, pelos diretores, nas práticas do tráfico de influências. Verdadeiramente vergonhoso.
      Toda a escola enferma do cancro que são os diretores . ADD, nomeações, horários e perseguições várias, são as suas metástases.
      Os professores vivem amordaçados e num ambiente salazarento, com a benção até do pcp e be!!!! O que importa são as comemorações dos 50 anos da democracia, onde????

      1. Ó Quando chegará, quando falares do Dr Salazar é teu dever ficar de imediato em sentido e bates a pala duante 29 minutos.

  1. Subscrevo na integra as suas palavras, caro amigo!

    • Falar verdade on 4 de Julho de 2021 at 13:20
    • Responder

    Reitero tudo o que foi escrito neste artigo.
    Lamento, com 31 anos de serviço, o que se verifica na “classe docente”, por isso era urgente existir uma Ordem, e não um Estatuto, porque com uma Ordem, ninguém se atropelava uns aos outros e a palavra ética é entendida com a desejada assertividade, o que não se verifica com o estatuto.
    Como os casos em que existem professores com mestrados na área da supervisão e ninguém na escola lhes dá valor, ninguém os ouve, e muitos cargos são atribuídos a alguns que ainda nem sequer entraram na carreira docente e é um caos….

    • Alecrom on 4 de Julho de 2021 at 13:29
    • Responder

    É a mentalidade geringonça.
    O compadrio socialista.
    A maçonaria.
    A esquerda patriótica.

    • António on 4 de Julho de 2021 at 13:32
    • Responder

    Bom artigo, com grandes verdades, algumas delas muito tristes! Mas nada melhora neste país!

    • Terra das Lágrimas on 4 de Julho de 2021 at 16:58
    • Responder

    Meu caro Sr Carlos Santos:

    O que deixa registado é, segundo o que conheço, tudo verdade! mas há muito mais. Já aqui alguém acrescentou o resto. A avaliação docente é um embuste e agora até se começa a descobrir, tenho informações muito fiáveis, professores em avaliação fazendo pressão sobre avaliadores e coordenadores de departamento; relatórios de autoavaliação que registam o que jamais existiu. Quanto aos coordenadores nem sequer deviam, muitas vezes, ser aqueles que o são, porque também é verdade o que aqui já foi dito: há muita gente com muitos cartões mas não se preocupa em fazer o que devia.
    Quanto a eleição de diretores, basta prometer umas quantas coisitas aos elementos do que a classe docente designa como Conselho Geral e imediatamente se consegue a eleição. De seguida atribui-se outras benesses (horários à medida dos favores) aos amigos.
    É pena que tenha filhos e sobrinhos no meios deste imbróglio e outros familiares perseguidos pelo sistema mas acredito que alguns testemunhos como o seu, um dia cantarão vitória!

    • A verdade que incomoda muita gente on 4 de Julho de 2021 at 17:05
    • Responder

    Desde o momento em que, como consequência direta da Abrilada de 74, foram ingressados na carreira única, ultrapassando frequentemente licenciados pelas universidades públicas a lecionar no ES, as ex Bábás e os ex Regentes escolares (atuais educadoras de infância e professores do primeiro ciclo), com os seus cursitos tirados em ESEs mais que duvidosas, ficou irremediávelmente comprometida qualquer noção de ética na carreira docente.

    • Leão da Estrela on 4 de Julho de 2021 at 21:48
    • Responder

    Não restam duvidas!
    Tempos apocalípticos, os que vivemos!

    • Professor desiludido on 5 de Julho de 2021 at 12:03
    • Responder

    Para não falar dessa linda coisa que são as Condições Específicas, que promove todo o tipo de falcatruas e conheço muitos casos de oportunismo. Quando ando ouço falar mal dos indivíduos do Rsi e afins, penso sempre ‘mas estes gajos não têm moral nenhuma para falar’ já que parasitas são eles. Enfim tempos modernos. O que vale é que daqui a 2 anos largo isto sem nenhuma saudade.

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