A Tia Maria está velhinha.
Passaram muitos anos, desde que a vi pela última vez. Eu era mais pequena e, talvez por isso, achava-a muito alta. Dela sempre circularam histórias mirabolantes na família. Por uns muito amada, por outros odiada profundamente pelas angústias que ninguém queria e ela espalhou. Eu sempre a escutei com curiosidade, bebendo as suas palavras para além do tempo.
Agora que cresci, porém, vejo que mingou aos meus olhos, o corpo encurvado de rugas, mas o coração generoso de outrora. Enquanto me oferece um chá quente com as mãos trementes, perde-se no antigamente, quando eu era pequenina e lhe trepava para o colo a pedir contos.
Depois, calmamente, viaja para a sua juventude rebelde. Fala-me da PIDE, desses tempos desconhecidos em que tudo era diferente. Reconta-me a prisão onde passou noites sem dormir. Acha que foram 15, mas não tem a certeza. Foi presa e condenada, perdendo os “direitos políticos”. E ri-se.
– Já viste o disparate? Tiraram-me os direitos políticos que eram votar no Salazar… Ora eu andava a lutar para ter liberdade de votar em quem quisesse, portanto, dificilmente, se perde o que já não se tem, não é?…
Observo-lhe o rosto sereno, ocultando as marcas rígidas desse passado atroz.
Hoje voto e devo isso à minha tia Maria e a outros que, como ela, acreditaram que o sonho de ser livre, de pensar livremente era possível. Alguns não resistiram à tortura, outros sobreviveram, mas, por muito que o desejem, não a podem esquecer.
É isso que a História nos lega: a capacidade de recordar. Recordar que o meu direito existe, oferecido por aqueles que me conquistaram a oportunidade de me abster, de optar, de decidir.
Porém, a verdade é que eu não voto por ela. Voto por mim. Porque, apesar da descrença e do descrédito, o meu direito é inalienável e posso usá-lo para o que me apetecer, e não para o que me impõem.
Mesmo se, ao colocar a cruz, receio que tal não seja suficiente para mudar este mundo.
1 comentário
A ação de cidadania não se esgota no voto.