Lembro-me muito bem: quando era miúda, a frequentar o antigo Ensino Primário e até uma certa altura da minha escolaridade, quando me perguntavam o que queria ser, dizia sempre que queria ser Professora…
Queria ser Professora, mas acabei por não ser Professora… Mais tarde, outros caminhos levaram-me a mudar de ideias e a querer ser Psicóloga, escolha que fiz com toda a convicção…
Sou Psicóloga, mas, por motivos diversos, sobretudo profissionais, mas também pessoais, acredito que conheço bem a realidade das escolas públicas e, em particular, o trabalho dos Professores que aí exercem funções, as respectivas alegrias e os sucessos, mas também as muitas amarguras e os logros com que se tem debatido a Classe Docente ao longo dos últimos anos…
Enquanto profissional de Educação, subscrevi várias Petições Públicas, relativas a alguns aspectos específicos que afectam a Classe Docente; tenho acompanhado os Professores em algumas Greves, assim como em muitas Manifestações públicas de protesto, desde as que se realizaram no ano de 2008, até às mais recentes, sobretudo as que foram convocadas pelo STOP, mas também algumas promovidas pela Fenprof…
Como já afirmei noutras ocasiões, e em tom de brincadeira, talvez eu seja uma Psicóloga com um plausível “complexo de Professor”, “transtorno psicológico” inventado por mim, não reconhecido no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, 5ª edição, da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-5)…
Quando se trabalha há mais de 28 anos, todos os dias, directamente com Professores, como é o meu caso, além de se “sentir na pele” alguns dos problemas também experienciados por esses profissionais, acaba por se desenvolver uma certa identificação com os mesmos…
No fim de tantos anos de convivência, criam-se, inevitavelmente, empatias, estabelecem-se relações de reciprocidade e (re)conhecem-se bem “as dores” de muitos Professores, ainda que as respectivas atribuições e responsabilidades sejam distintas…
Se há coisa que não consigo fazer é abster-me ou deixar de lutar por aquilo em que acredito ou que considero como mais justo, para mim ou para os outros…
Por princípio, recuso abster-me e muito dificilmente alguém me verá remetida ao silêncio, face a questões que considere importantes… Se isso acontecer, algo de muito grave me estará a afectar…
Mas não nos iludamos, por vezes, há um preço a pagar por essa “ousadia”… Sei muito bem qual pode ser o preço a pagar pela recusa da neutralidade e da abstenção, face a certos Poderes discricionários, pautados por atitudes persecutórias e retaliativas… Mas remeter ao silêncio seria ainda pior…
Mas não nos iludamos, às vezes, fica-se sozinho, quando a luta se torna séria…
O passado ficou lá atrás, mas não se esquece e a memória também não se apaga…
Neste momento, e no fim de muitas lutas comuns, talvez possa afirmar que o meu desânimo pelo estado actual da Escola Pública também será o desânimo partilhado por muitos Professores, estes últimos, em acréscimo, confrontados com:
– Uma Carreira Docente degradada, em frangalhos, sem consistência lógica e repleta de confusões, sem equidade e sem justiça;
– Sindicatos de Educação e líderes sindicais “fora do prazo de validade”, presos a agendas partidárias, fracos ou caídos em desgraça, que não conseguem suscitar o entusiasmo, nem a confiança, nem a adesão dos seus supostos representados… A decepção e o descrédito face aos Sindicatos parecem indisfarçáveis;
– A inexistência de genuína solidariedade entre pares, numa classe profissional muito heterogénea, endemicamente desunida, pontuada por numerosos conflitos fratricidas e por demasiados “grupos de interesses, “linhagens” ou “facções”, que frequentemente desencadeiam “explosões de susceptibilidades”, hostilidades várias, amofinações e discórdias, todos culminando na ausência de consensos;
– A existência de absurdas e insanas tarefas burocráticas, o entulho de papéis, que tendem a matar a motivação necessária às actividades de natureza pedagógica…
E podia continuar pelo número excessivo de alunos por turma, ou pela instabilidade da profissão docente, ou pelas condições físicas e materiais de muitas escolas públicas… E podia continuar…
Ser Psicóloga também é, por vezes, difícil… Lidar diariamente com várias formas de sofrimento psicológico que afectam terceiros implica, entre outros, uma grande dose de resiliência que, às vezes, quase se esgota… Stress, angústia, frustração ou cansaço emocional e psicológico também podem acometer os Psicólogos, que não estão imunes ao burnout profissional…
Afinal os Psicólogos também são gente, em vez de criaturas “assépticas”, a quem está vedada a expressão de sentimentos, emoções ou estados de alma e também têm que cuidar da sua Saúde Mental…
Os Psicólogos também choram, também riem, também se indignam e não são sempre serenos…
Ainda assim e pelo que conheço do que é ser Professor nos tempos que correm, afirmaria, hoje, sem qualquer dúvida:
– Não quero ser Professora!
Por comparação com o presente, na altura em que afirmava que queria ser Professora, seria, com certeza, muito mais fácil exercer essa profissão, ainda que naquela época não tivesse grande consciência das dificuldades intrínsecas a esse trabalho…
Qualquer profissão apresenta dificuldades inerentes ou próprias, mas na de Professor as contrariedades parecem ter crescido exponencialmente e assumido proporções inusitadas, ultrapassando em larga escala aquilo que seria expectável e aceitável…
A atractividade da profissão docente, em particular no Ensino Básico e no Ensino Secundário, tem vindo a perder-se e isso é um dado incontornável… A acentuada falta de professores nesses níveis de ensino assim o comprova…
Os aspectos de natureza psicopedagógica, como a relação com os alunos ou o trabalho directo com os mesmos, tradicionalmente causadores de satisfação no trabalho docente, talvez já não sejam suficientes para anular o nível de insatisfação gerado pelas dimensões sociopolíticas, como os salários ou o reconhecimento social da profissão ou a progressão na Carreira…
Nas actuais condições, quem quererá ser Professor no Ensino Básico ou no Ensino Secundário?
Nas actuais condições, quem gostaria de poder abandonar o exercício da função docente nesses níveis de ensino?
As políticas educativas vigentes nos últimos anos acabaram por afastar potenciais candidatos a ingressar na profissão docente e fazer com que muitos dos actuais Professores desejem abandonar esse trabalho o mais rapidamente possível…
Com todo o respeito que a figura de Presidente da República me merece, bem gostaria de ver o Professor Marcelo Rebelo de Sousa a leccionar no Ensino Básico ou Secundário de uma qualquer Escola Pública, supondo que, em 2026, após terminar o seu mandato, o mesmo manterá a intenção de voltar a dar aulas (Jornal de Notícias, em 25 de Dezembro de 2024)…
Veremos…
Paula Dias