As Falsas Questões
Num artigo para o Público, o meu colega Paulo Prudêncio colocou as coisas de forma muito certeira quando escreveu que “o debate sobre a escola desequilibrou-se e descolou da realidade. Emergiu um mar de radicalidades (da natureza das coisas) que ignorou a existência de salas de aula. Por exemplo, é insensato e desproporcional querer ainda mais dias lectivos para recuperar aprendizagens. Não há dados para o exigir com rigor” (texto colocado online no dia 11 de Maio de 2021).
E acrescenta outros temas em que o que passa por ser um “debate”, mais não é do que uma sucessão de monólogos, em que vários intervenientes se encapsularam em posições que ignoram a situação concreta vivida nas escolas, preferindo repetir fórmulas esgotadas e cuja inadequação já teve demonstração empírica como a gestão escolar, a falta de professores, os seus horários ou o seu regime de avaliação de desempenho.
Para não transcrever de forma extensa o seu artigo, vou aqui resumir alguns aspectos sobre os principais pontos que ele identificou com clareza, correndo o risco de me repetir em alguns argumentos a que recorri em outras ocasiões.
Gestão escolar – é impensável ler e ouvir pessoas a defender o aprofundamento do trabalho colaborativo e a partilha de experiências nas escolas, quando nelas os procedimentos relativos à tomada de decisões se afunilaram e concentraram de um modo que deixou de fora a larga maioria dos docentes e, em simultâneo, provocou uma acelerada e profunda erosão do sentido de pertença e identidade em relação á sua comunidade escolar. A lógica de encarar a escola como uma organização semelhante às outras é um erro a vários níveis, a começar pela concepção das instituições e organizações como um conjunto indiferenciado, a que se devem aplicar as mesmas regras. É estranho ler críticas (injustas) a um alegado modelo único de organização das salas de aula, que replicará a lógica da produção industrial massificada, quando se aplicam à sua gestão exactamente o mesmo tipo de conceitos. A competição e a concorrência tomaram o lugar da partilha e cooperação, mas a isso voltarei mais adiante, a propósito da avaliação do desempenho docente.
Falta de professores – quase todas as medidas tomadas nas últimas duas décadas em relação à carreira docente foram no sentido de a descaracterizar, precarizar e menorizar perante a opinião pública, amesquinhando-a em termos simbólicos e proletarizando-a em termos materiais. Aos professores contratados ergueram-se obstáculos de acesso ou recuperaram-se medidas de “racionalização” na distribuição e gestão dos horários, enquanto aos professores dos quadros se limitaram horizontes de progressão. Os avisos acerca da necessidade de não tornar a docência uma profissão pouco apelativa e assegurar a sua renovação foram ignorados. A crença de que a existência de um vasto contingente de candidatos à profissão (de acordo com os números de candidaturas nos concursos externos ao longo de outros anos) asseguraria a substituição de quem saísse por esgotamento ou atingir a idade da reforma, chocou com uma realidade não prevista pelos cultores da gestão “racional” dos recursos humanos. Ao mesmo tempo, a permanente menorização dos cursos na área das Humanidades, estendeu-se aos cursos de formação de professores que agora perderam qualquer autonomia ou diversidade em termos de saídas profissionais. As consequências deste tipo de políticas está bem à vista: muitos foram os que deixaram de querer continuar a ser professores e muitos outros nem sequer consideram a possibilidade de optar por essa via profissional. Tudo isto porque muitos especialistas e decisores optaram por ignorar a realidade e ficarem presos às suas convicções ideo0lógicas ou interesses pragmáticos.
Avaliação do desempenho – a minha experiência, em especial a mais recente, como árbitro nomeado por colegas para árbitro de recursos ou como mero “consultor” de reclamações, permitiu-me conhecer de perto as práticas de avaliação do desempenho docente em várias escolas e confirmar a indignidade de um modelo pensado apenas para travar a progressão salarial dos professores e nada no reconhecimento do mérito. Confirmou-me ainda até que ponto a natureza humana é permeável aos desejos mesquinhos de vingança pessoal ou ao exercício abusivo de qualquer poder que se consiga ter sobre o que antes eram pares e agora se encaram como meros subordinados. E sobre a incoerência de quem fala muito num sentido, mas depois se encolhe quando pode fazer algo para combater o que se diz ser injusto. A este propósito vou citar extensivamente o que outro colega (Alberto Veronesi) também escreveu há pouco tempo no Público: “é preciso que os professores não se diminuam e se considerem executantes de fim de linha que nada podem fazer para alterar o panorama educativo, a não ser resmungar enquanto deambulam pelos corredores da escola. Somos todos capazes de muito mais. Temos de mudar também a nossa mentalidade, pois muito daquilo de que nos queixamos no sistema, deve-se a nós próprios. Protestar sem percebermos que cada um de nós faz parte do sistema não só é um mau princípio mas também é uma visão muito redutora do próprio sistema!” (texto colocado online no dia 10 de Maio de 2021). Tal como eu, ele também se deparou com as perversidade de um sistema de avaliação, cujas “garantias” ao nível das reclamações e recursos podem ser completamente desvirtuadas quando quem exerce certos cargos tem da sua função uma concepção meramente burocrática. É verdade que também conheci colegas com uma forma de estar irrepreensível e escolas onde ainda sobrevive um espírito, hoje quase perdido, de justiça e práticas de transparência. Onde as pessoas que desempenham certas funções, o fazem com elevado profissionalismo e conhecimento das suas responsabilidades.
As aprendizagens perdidas – volto ao tema, não por especial prazer, mas porque é o tema mais recente em que se ouvem e lêem coisas que entram em choque com o que resta de bom senso no debate público sobre Educação. Há quem tenha chegado, à boleia da pandemia, à discussão das questões educativas, oferecendo ideias inovadoras que ninguém pediu para resolver problemas que foram criados para justificar a aplicação dessas pseudo-inovações. De alguma forma, fazem-me lembrar aqueles casos em que certas patologias/doenças passam a ter uma existência autónoma para justificar um novo medicamento no mercado. Ao contrário do que passa por ser senso comum, sem sustentação empírica, este ano vou dar mais aulas do que alguma vez dei, por exemplo, na disciplina de História e Geografia de Portugal. Apesar de dois feriados em Junho e de algum imprevisto que me aconteça, conseguirei ultrapassar, pela primeira vez em três décadas, a centena de aulas. Lamento desiludir os catastrofistas, mas não restarão conteúdos por leccionar e as aprendizagens que possam ficar por realizar ou as competências por desenvolver, não resultam dos efeitos da pandemia. E muito do que pode estar a correr menos bem, não é novidade da época, mas sim o efeito acumulado de muitas reformas e enxertos nos currículos, a par de muita obsessão com o que se diz ser “essencial”.
JL