Cenários de verão I

Arrasta-se ao  longo do areal com a face transfigurada de raiva. O miúdo, pequenino, moreno atarracado, o pescoço colado aos ombros e a cabeça quadrada, berra com os dois pulmões  presos na boca.

Lá do fundo chegam também aqui os ecos de uma voz feminina, possante, também ela nitidamente zangada, que se sobrepõe ao mar, ao calor, ao ruído marinho das outras pessoas::

– Ó Simão! Ó Simão Filipe! Viens ici!!!!

O garoto prossegue mais alguns metros indiferente, pontapeia a areia com desprezo.

– Ó Simão, ó Simão Filipe, anda cá, pá!!!!!!

Inconsolável com alguma contrariedade, o garoto regressa ao colo materno, rodeado pela sua tribo que trinca consoladamente pastelinhos de bacalhau e croquetes de carne, ainda a pingarem de fritura, deixando oleosos os  dedos, as toalhas e a areia em volta pintalgada de salpicos de gordura. 1

A mãe, ocupando todo o espaço do guarda-sol, agarra o Simãozinho por uma mão, mas este gira furibundo, berrando que não quer, o que quer que seja que tem mesmo de ser, gira proferindo impropérios, misturando línguas numa intrincada dança furiosa de palavras. Continua a girar e gira tanto que, inesperadamente, a mãe, esse gigantesco naco de mulher mal passada debaixo do guarda-sol, também começa a girar, e gira o guarda-sol e gira a tribo toda, de tal forma que um vendaval terrífico e espiralado se forma mesmo ali, fazendo voar chapéus por todo o lado, enquanto a areia faz remoinhos dolorosos em torno dos incautos banhistas inesperadamente chicoteados por grânulos velozes.

O Simão Filipe ainda berra com todos os pulmões que “não e não e não!”, e eu podia jurar que a culpa de toda esta ventania era dele, do pestezinha que rodopia ainda preso por uma mão num turbilhão de berros e ar. Então, um súbito buraco fundo ergue-se na areia, como o olho de um tufão enegrecido, que imediatamente engole tudo até a praia se tapar e acomodar de novo numa líquida tranquilidade feita somente de oiro, sal e azul.

Respiro fundo e deito-me na toalha agora que a paz regressou ao meu pequeno pedaço de paraíso.

Então, como nas catacumbas do inferno erguendo-se do chão, oiço outra vez:

– Ó Simão, Simão Filipe, viens ici, pá! ‘Tás aqui ‘tás a manger!!!

 

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11 comentários

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    • IBell on 11 de Agosto de 2015 at 16:39
    • Responder

    Uma delícia, tal e qual… 😀

      • desalinhada on 11 de Agosto de 2015 at 22:47
      • Responder

      Delícia?! Um artigo preconceituoso, num país que deve muito aos emigrantes sejam eles os cérebros ou das classes mais desfavorecidas. Comportamentos incorretos tem a maioria dos portugueses…

        • desalinhada on 11 de Agosto de 2015 at 22:51
        • Responder

        Um gigantesco naco de mulher mal passada??!!!!!

          • Fafe on 11 de Agosto de 2015 at 23:40

          Sim. E com varizes, ultrapassando a apoplexia. Um monte gelatinoso de banha sem colorau.
          Et, au jour de oui, je vais me jeter, outra demão!

        • Fafe on 11 de Agosto de 2015 at 23:25
        • Responder

        Hum! Experimenta manter-te na órbita do Simon Philippe e verás se gostas de cavalos.
        Preconceito? Era só o que faltava se não se pudesse escrever uma obra de arte!

    • Fafe on 11 de Agosto de 2015 at 22:45
    • Responder

    Um “sarrafório no lombório”, a bon boff, é que era!

    • Rute on 12 de Agosto de 2015 at 16:58
    • Responder

    Gosto muito de ler o que a Diana escreve, mas, de facto, considero que escreveu um texto lamentável. Quanto a mim, são esses ”viens ici” que dão um colorido imenso a este país tão cinzento… São eles que, após um ano de trabalho, muitas vezes em fracas condições, regressam à sua casa para serem como são: genuínos! E são eles que, em pequenas comunidades, fazem girar esta economia moribunda.. Sim, porque eles aproveitam a estadia em Portugal para fazerem comprar, irem à cabeleireira da rua mais próxima, ao mercado, enchem o restaurante do ti Zé…Acho que mereciam um maior respeito da sua parte e não essa verborreia fácil, a roçar um grande complexo de superioridade da sua parte…

      • desalinhada on 12 de Agosto de 2015 at 18:06
      • Responder

      Eu diria de inferioridade. Aproveite para escrever sobre a falta de civismo dos portugueses em geral. Estacionamento selvagem, fuga aos impostos etc professores que dão explicações sem declararem etc etc Não lhe faltam temas …. e claro dizia o Fafe é arte claro mas toda a obra de arte também está sujeita a crítica. Viva a liberdade de expressão.

        • desalinhada on 12 de Agosto de 2015 at 18:09
        • Responder

        CLARO QUE a sugestão é para a Diana. Na praia não lhe faltam temas até pode começar pela exposição solar… a evitar das 11h às 16 h ou provavelmente a Diana também apanha sol a essa hora, pois se viu comer os pastéis de bacalhau!!!!

    • PCris on 12 de Agosto de 2015 at 21:07
    • Responder

    Gosto muito de ver as “nossas” caricaturas. Não as interpreto como preconceito (ou Camilo e Eça tb eram preconceituosos?), apenas como imagem de “tipos”, de personagens q andam por aí. Venham mais!!

    • Fafe on 12 de Agosto de 2015 at 21:57
    • Responder

    Volta, D. Francisco Manuel de Melo, estás perdoado!

    “Sôbolas águas correntes
    de aqueles Rios cantados
    que a Babilónia levados
    com lágrimas dos ausentes
    chegam ricos e cansados,

    Úa tarde me assentei
    cheio de dor e fadiga
    e hoje do que lá passei
    me manda o tempo que diga
    quanto em lágrimas direi.

    Espalhei meu triste canto
    pelas desertas areas:
    os olhos foram as veas,
    a música foi o pranto,
    o instrumento as cadeas.

    Ali com grandes tormentos
    vi não passar minhas mágoas,
    vi voar meus pensamentos.
    vi que levavam as águas
    quanto trouxeram os ventos.

    Tudo quanto em outra idade
    se fez amar e querer,
    antes de bem se entender,
    ali mandava a verdade
    que se fosse a conhecer.

    Mas eu, vendo-me cativo,
    bradei na força da queixa:
    dize, pensamento esquivo,
    já que a memória me deixa,
    porque lhe dizes que vivo?

    Ela, inda bem não se ouviu
    nomear, quando já chega,
    tão vingativa e tão cega
    que de um golpe destruiu
    quanta paz alma lhe entrega.

    Eis aquela paz antiga
    que sem memória gozava,
    já me mata e me castiga:
    e a dor, que antes se humilhava,
    ei-la soberba enemiga.

    Fados maus, dura violência,
    vil afronta, triste história,
    grave dor, mudada glória.
    com tudo pode a paciência
    só não pode co’a memória.

    Memória tão diligente,
    Faze estar quedos os anos!
    Passou-se a vida contente;
    deixa vir os desenganos,
    que eles vêm por si somente.

    Eu me queixo, tu te queixas,
    eu grito, tu arrezoas,
    levas-me as lembranças boas
    e dizes que, nas que deixas,
    grandes culpas me perdoas.

    Eu estava, que o não nego,
    sem ver, sem me lembrar nada:
    foste-me fazer tão cego
    que de úa glória passada
    me mandas fazer emprego.

    E, para ver que passou,
    me vendes um vidro raro,
    por onde veja bem claro
    o bem. Mas, se me deixou,
    por que mo vendes tão caro?

    Oh, que bem! Quem nunca o vira!
    Oh, que ser! Quem nunca fora!
    Falso Deus, que a quem o adora
    mais depressa se retira
    para as sombras donde mora!

    Não é este o desejado
    (que passou) Bem tão contino,
    que até tinha de divino
    deixar que fosse esperado,
    como do justo, do indino.

    Onde aquele dia é já
    em que o sol alegre vi?
    Se escuro ou claro estará?
    E, porque fugiu de mi,
    quanto mundo alegrará?

    Essas horas que passaram
    tão ledas, adonde vão?
    Ai, e em que parte serão?
    Que, pois tal vento levaram,
    quem sabe se tornarão”

    Que é de aqueles medos leves
    e as honestas cobardias,
    risos e lágrimas breves?
    Que é do bem daqueles dias,
    contra calmas, contra neves?

    Onde é lançada a manhã?
    A noite adonde parou?
    E o ar, que brando assoprou
    por dentro da nuvem vã,
    que tempestade o levou?

    Aquela serenidade
    da vida antiga e ditosa,
    quem a roubou desta idade?
    E quem de cousa saudosa
    tolher-nos quer a saudade?

    Logo, se eu saudoso for
    de tal vida eternamente,
    acha-me disculpa a gente,
    porque às vezes mata a dor,
    e de justa não se sente.

    Oh Terra Sião chamada,
    de cujo pó tive vida,
    se da sorte me és vedada,
    nunca outra terra nacida
    a meus ossos dê morada!

    Da alta esfera em que se encerra,
    me arrebate o fogo ou vento!
    Morra no estranho elemento,
    mas não caia em outra terra
    nem cinza, nem pensamento!

    Tu, por mais que lide a morte,
    serás sempre doce e quista,
    mas que o ferro ou pese, ou corte;
    vingue-se a sorte da vista,
    que o Amor me vinga da sorte.

    Serás o perpétuo ofício
    dos olhos d’alma queixosa,
    que, em vítima saborosa,
    se ofereça em sacrifício
    nas aras da fé piedosa.

    Mas neste campo de errónia,
    de injúria e de maldição,
    que merece a ceremónia
    de se lembrar de Sião
    quem padece em Babilónia?

    Quem se lembra na miséria,
    não califica a vontade;
    lembrar na prosperidade,
    essa lembrança é matéria
    de toda a amiga verdade.

    Aqui donde se injuria
    a desgraça como o erro,
    e a razão, presa à porfia,
    tem por certo ser o ferro
    o menos da tirania.

    Que mereço em me lembrar
    de ti, cidade a melhor,
    pois, se a lembrança não for,
    como poderei levar
    nem a mi, nem minha dor?

    Úa só hora daquelas
    val por muitos padeceres.
    Inda assi, tomara havê-las,
    mas que um só dos seus prazeres
    custara cem mil cautelas.

    Ou que elas não foram tais,
    ou, se o fossem, não passassem,
    ou pelo menos tornassem
    algúas suas iguais,
    que as passadas consolassem.

    Mas olhai, que vão desejo
    pedir ao tempo a tornada!
    Como se a vida que vejo
    não fora já tão cansada,
    que a passada é de sobejo!

    Passa um dia, o outro vem,
    tal como essoutro passado.
    Não é o tempo o mudado:
    um foi bom, e outro também;
    o gosto, si, que é trocado.

    Aquele Sol me aquentou,
    e esse mesmo Sol me aquenta:
    e a Lúa, que alumiou,
    se se mingua, ou se acrecenta,
    a mesma lúa ficou.

    Passou um Janeiro frio,
    voltou um Março amoroso,
    chegou Maio, e foi ventoso,
    veio Agosto, e fez Estio,
    e entrou Novembro chuvoso.

    Torna a vir outro Janeiro,
    eis este como aquele ano,
    na ordem por derradeiro;
    porém no gosto ou no engano
    nenhum dia tem praceiro.

    O verão da mocidade
    pouco e leve tempo dura ;
    e aquela alegre verdura,
    vista despois de outra idade,
    já parece sombra escura.

    Logo, se é nossa a mudança,
    não jogo do tempo vão,
    quem se mata ou quem se cansa
    pela Desesperação,
    por se vingar da Esperança?

    Calidade atroz da vida
    não ter hora de firmeza;
    e tendo tal natureza,
    ser tão buscada e tão crida
    da nossa forte frequeza!

    Pois quem no mesmo perigo
    quis fazer seu certo assento,
    que se queixa do castigo?
    Leve consigo o tormento,
    pois traz o engano consigo.

    Um só modo descobriu,
    contra o tempo e a mudança,
    Amor, que à leve balança
    das gentes não consentiu
    Desejo nem Esperança.

    Esta só virtude rara,
    mal usada dos humanos,
    de sorte o bem nos depara,
    que, detendo o pé dos anos,
    para imortais nos prepara.

    Ditoso seja e louvado
    justamente o pensamento
    que, na glória e no tormento,
    se deixa ser governado
    pelas mãos do entendimento.

    Ame-se o que é para amar;
    veja-se o que é para ver;
    ver só para venerar,
    venerar para entender,
    entender para louvar.

    Se conheces no alto objeito
    o valor e a perfeição,
    não temas a sujeição,
    porque do culto e respeito
    nace a justa adoração.

    Transportar no amado espírito,
    unindo à pura vontade,
    e lá por modo esquisito,
    enxirir na eternidade
    como infinito o finito;

    Cativar o fero bruto
    da liberdade atrevida,
    e a razão, sempre subida
    sôbolo desejo astuto,
    viver triunfante e temida.

    Quem nos diz que o mundo é
    injusto? Quem nos diz tal,
    contra o que nele se vê,
    nem crê nos males do Mal,
    nem nos bens do Bem tem fé.

    Amar o bem da Virtude
    é virtude e reverência,
    Agora gema a insolência,
    que eu fico que ao bem não mude
    da fé para a contingência.

    Nem as duras confusões,
    nem os casos, nem os erros,
    nem cadeias, nem grilhões,
    nem ausências, nem desterros,
    mudam do peito as razões.

    Pois quem no deserto escuro
    viva luz lhe apareceu,
    que o bom caminho lhe deu,
    porque suspira o seguro,
    se ele próprio a luz perdeu?

    Mas, se a segue, se conjura
    a noite contra ele em vão,
    pois, por mais que cerre escura,
    firme passa o coração
    e a vontade vai segura.

    Contra o pinheiro do monte
    forceje o Sul indinado,
    que, quando muito forçado,
    se a rama lhe muda a fronte,
    o tronco nunca é mudado.

    Os tristes bens da riqueza
    ramos são, podem dobrar
    c’o peso; mas a firmeza
    sempre no home há-de estar
    de úa própria natureza.

    Os braços da adversidade
    quando lutam c’o varão,
    fortes e destros serão;
    porém a contrariedade
    faz-se ao corpo, à alma não.

    Que era o que dizer queria
    com tão valentes razões
    Epicteto (entre aflições),
    quando a Júpiter pedia
    nova chuva de paixões?

    Quando Anaxarco ante o povo
    pisado foi duramente
    que bradava ao Rei e à gente,
    senão: Pisa-me de novo,
    porque Anaxarco não sente?

    Que era Comédia e grão festa
    dos Deuses, disse o gentil,
    a mais justa e mais honesta,
    ver um peito varonil
    lutar co’a sorte molesta.

    Cruel condição que pôs
    a Fortuna em seu morgado,
    que não possa ser herdado
    jamais, acerca de nós,
    sem mudança e sem cuidado!

    Quem se chama venturoso,
    sem contenda e sem perigo.
    ele pode ser mimoso;
    mas viver sem enemigo,
    não é sinal de ditoso.

    Eu persigo ao meu vezinho
    ele ao seu, continuamente,
    e ordenou o céu providente
    que pelo próprio caminho
    a mi me encontre o parente.

    Conto o Pai, conto o Irmão.
    Homem és? És enemigo.
    Oh fruto da maldição!
    Os dentes de Cadmo antigo
    somos os filhos de Adão.

    Senhor!, que forjaste logo
    mais gládio que nos moleste,
    se aos homens nos homens deste
    dura fome, ingrato fogo,
    guerra crua e mortal peste?

    Que fome tão desumana,
    que fogo tão comedor,
    ou que guerra tão tirana,
    que peste, como o furor
    desta vil fraqueza humana?!

    Aquele Rei que lançou
    Daniel aos leões úa hora,
    (e qual se clemência fora)
    com que mistério mandou
    cerrar-lhe as portas por fora?

    Que nos quis dizer então,
    senão que, no lago escuro,
    Daniel, se tem razão,
    ele o dava por seguro
    das feras, dos homens não?

    O tálamo conjugal,
    olhai por que o troca aquele:
    pela vida e pela pele
    do manso e pobre animal,
    que as merece melhor que ele!

    Essa alimária escondida
    com que doesto o afrontou,
    para lhe tirar a vida?
    C’o trabalho que a buscou
    entre a espinhosa guarida.

    Contra a lebre sempre ousado,
    do lobo foge que avoa;
    grande pesca na alagoa,
    e, em chegando ao Mar salgado,
    treme do Mar, porque zoa.

    Redes, laços, esparrelas,
    que enganos e que falsia!
    E metido o zelo entre elas…
    Senhor, manda-nos um dia,
    em que a luz mostre as cautelas!

    Já com risos e brandura
    assigura a paz da gente;
    peçonha menos urgente
    nas águas da fonte pura
    deixa a fingida serpente.

    Manda tu contra este mal
    (pois és das verdades centro)
    úa vista divinal;
    ou, para nós vermos dentro,
    faze os peitos de cristal.

    Do crocodrilo do Nilo
    exclamarn os naturais,
    porque, chamando com ais,
    mata como crocodrilo
    quando criança o buscais.

    Que dissera Plínio agora
    à vista não do deserto,
    quando täo certo lhe fora
    que o crocodrilo mais certo
    entre nós nas cortes mora?

    Triste idade fraudulenta,
    donde todo o mal respira
    e a verdade se retira,
    porque os campos que apascenta
    lh’os vem pastando a mentira.

    Foge tu, pelos presságios
    do que vês lá nas areas,
    gozando como sufrágios
    pelos ecos das sereas
    o escarmento dos naufrágios.

    Deixa a doutrina do dano,
    não fies da contingência,
    e adora com reverência,
    antes que o do Desengano,
    o templo da Providência.

    Se vês arder o casal
    ou do parente ou do amigo,
    teme-te da sorte igual;
    que, se ele vira o perigo,
    nunca o dano fora tal.

    Mas tu, mas eu que faremos,
    se nós mesmos fabricamos
    o cavalo que adoramos
    e dentro d’alma metemos
    o fogo em que nos queimamos?

    Qual Sínon nos fez o dano,
    com que indústria ou que profia,
    quem traçou, Grego ou Troiano,
    senão nossa fantesia
    a traça do nosso engano?

    Quem te obriga a levantar
    altas torres sobre o vento?
    Quem lhe deu ao pensamento
    as asas para voar,
    senão teu próprio ardimento?

    Então, se a cera oportuna
    não saíu, e te desterra
    a luz do Sol importuna,
    quando caies sobre a terra
    porque infamas a Fortuna?

    Fortuna, não, providência
    é da mão que o mundo rege,
    por mais que o esprito forceje,
    pôr-lhe tudo em contingência,
    para que nada deseje.

    Aquele sempre temer,
    aquele nunca acertar,
    aquele nada entender,
    aquele tanto enganar,
    que outra cousa quer dizer?

    Quantas vezes, persuadido
    da fé dos olhos, errei,
    e quantas vezes busquei
    rosas no campo florido,
    onde só serpes achei!

    E quantas, bem diferente,
    temendo-me dos abrolhos,
    caminhada impaciente,
    e contra o voto dos olhos
    fui parar ditosamente!

    Ai de quem se persuade
    da teima do pensamento,
    e para julgar o intento
    manda assentar a Vontade
    no trono do Entendimento!

    Tal o processo seria
    qual do juiz a eleição:
    a prova será profia,
    as rezões, a sem-razão,
    e a sentença, tirania.

    Eis-me aqui, sem diferença:
    doutro tal juiz que elejo
    executado me vejo,
    e por outro tal sentença
    que foi dar o meu desejo.

    Eu, carregado de ferros,
    ele, de lástimas feas,
    ambos pagamos os erros;
    eu, arrastando as cadeas,
    ele, chorando os desterros.

    Cada dia exprimentada
    nova dor, nova penúria;
    e, entre os golpes desta fúria,
    apenas úa é passada,
    quando já chega outra injúria.

    A Enveja, a Detracção,
    a Fraude, o Engano, o Temor,
    a Dúvida, a Confusão,
    a Indignação, o Rigor,
    sobretudo a Sem-razão.

    Logo, com que confiança,
    Sião amado e propício,
    achar posso um leve indício
    que me assigure a esperança
    no fumo do sacrifício?

    Pois é já força que viva
    nesta escravidão incauta
    e manda a Fortuna esquiva,
    que enterrada fique a frauta
    e a liberdade cativa.

    Alto Senhor, sempiterno,
    sem primeiro e sem segundo,
    em cujo peito profundo
    consiste o comum governo
    deste mundo e desse mundo

    Permita teu ser divino
    mostrar-lhe a via e a verdade
    àquele espírito indino
    que vai à tua cidade,
    miserável peregrino!

    Põe-lhe diante a esperança;
    acompanha-o c’o Temor;
    acrecenta-lhe o Valor;
    manda afastar a Lembrança:
    caminhará vencedor.

    Tu , que és fogo e que és coluna,
    dá luz e dá fortaleza
    contra essa força importuna
    das trevas da Natureza
    e dos braços da Fortuna.

    Mas, pois que tenho acabado
    quanto lá cantei ao vento,
    fique a voz ao esquecimento,
    e c’o canto sepultado,
    fique também o instrumento.

    E, se eu, por vida cruel,
    idolatrar contra ti,
    ó Jerusalém fiel,
    dure eternamente em mi
    a confusão de Babel!”

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