No século I antes de Cristo, portanto há mais de dois mil anos contados, um cidadão romano, de seu nome Marcus Tulius Cicerus – conhecido entre nós como Cícero – que de ocupação era advogado e político, deteve-se a refletir sobre quais os verdadeiros objetivos de um orador.
Primeiramente, docere, ou seja, “ensinar”; seguidamente, delectare, que se traduz por “deleitar”. De forma muito resumida, o intuito é o de ensinar deleitando, apelando aos afetos de quem escuta.
Mas o que tem isto a ver com o ensino? Com o ser professor? Bem, se formos a ver as razões por trás da opção de ser professor de muitos, mas mesmo muitos colegas que hoje (ainda) subsistem nas nossas escolas, foi precisamente a vontade de transmitir às nossas gerações mais jovens o conhecimento, ajudando-os a dotar-se de ferramentas e estratégias que lhes permitam capacitar-se da melhor forma possível para se prepararem para o futuro pessoal, laboral, social, afetivo, etc… muitos professores iam para a escola de sorriso nos rostos. Muitos professores iam para a sala de aula com motivação. Muitos professores orientavam as suas aulas com gosto. Muitos professores acompanhavam o processo de crescimento dos seus alunos com genuína satisfação. E esses professores tinham tempo para se dedicar humanamente aos seus alunos. Tinham tempo para pensar em atividades, em estratégias, em tarefas, em propostas, e até em projetos que envolvessem os alunos e lhes permitissem abrir cada vez mais horizontes, sair cada vez mais da sua caixa, ser cada vez mais completos e íntegros. Já houve um tempo em que ser professor era ter tempo para a dimensão humana da sua relação com os alunos. Em que os professores, muito mais do que só “dar matéria”, eram também uma figura de respeito e uma referência. Quantas vezes um adolescente tem um problema, ou uma questão, que por vergonha não coloca em casa; que não coloca aos pares porque estes nada sabem que o clarifiquem; que não encontra respostas na internet porque esta está pejada de informação contraditória e de desinformação… quantas vezes os professores emprestavam um ouvido para problemas mais ou menos sérios, mais ou menos graves, mas que para o aluno em questão tinha um significado incalculável. Quantas vezes os projetos em que os alunos eram envolvidos pelos seus professores lhes permitiam ter verdadeiro contacto com realidades totalmente desconhecidas, mas que só em contexto de projetos, atividades ou clubes era de todo possível proporcionar aos alunos tais experiências? Quantas vezes os professores inspiravam alunos a seguir o seu caminho numa determinada área?
Nessa altura, os professores tinham, de facto, tempo, frescura, motivação, espaço para desenvolver e implementar a dimensão humana do ser professor. Nessa altura, os professores podiam docere et delectare, porque ensinavam com um gosto que contagiava os alunos. Ensinar deleitando… e não quer dizer que as aulas tenham de ser sempre lúdicas, não é o caso. Mas é o professor estar ainda dotado e a transbordar do amor pelo ensino que o levou a abraçar a profissão com espírito de missão. É o professor contagiar os alunos com o gosto que demonstra pelo que faz. É o professor estar cansado, com um cansaço natural e saudável, mas que não cansa… porque já o filósofo chinês Kung Fu Tsu, entre nós conhecido como Confúcio, há mais de 2500 anos afirmou que, aquele que sente verdadeiro gosto pelo que faz, não terá de trabalhar um único dia na sua vida – porque o que faz dá-lhe prazer e o cansaço que daí advém não pesa. Tantos professores eram assim…
Mas depois… lentamente, paulatinamente, como quem não quer a coisa… neste país herdeiro dos processamentos burocráticos verdadeiramente kafkianos da Inquisição e do Estado Novo (por exemplo), eis que chegou às escolas uma lógica de burocracia crescentemente sufocante e castrante do que é o ser professor. Um peso absurdo e altamente esgotante começou a drenar a energia positiva dos professores. Um amor que se não alimenta, ou estagna ou morre. E nunca tanto como agora, em que os professores estão soterrados sob uma tonelada de encargos com burocracia – muita dela perfeitamente inútil para a felicidade dos alunos – se viram tantos professores a ir para a escola com olheiras, em vez de sorrisos. Nunca se viram tantos professores com esgotamentos, depressões e outros problemas advindos unicamente da sobrecarga burocrática. Nunca se viu um número tão elevado de professores a simplesmente abandonarem o ensino muito antes da idade da reforma, quebrantados pelo desânimo da realidade a que o ser professor foi votado. Uma realidade burocrata, onde o professor já vai cansado para as aulas. Onde o professor dá aulas nos intervalos das suas obrigações burocráticas. Onde o professor olha para o horário e lamenta ter aulas àquela hora porque assim vai ter de interromper o trabalho burocrático que tem um prazo de entrega. Onde os professores que ainda têm uma réstia do amor que originalmente os motivou, tentam fundar clubes e projetos, mas que lamentavelmente acabam por ficar sem dinamização por culpa da sempiterna burocracia. Onde os professores chegam a dezembro e já só lamentam a enormidade de tempo que falta até ao final do 3.º período. Onde o cansaço e a exaustão são o estado natural do dia-a-dia de um professor de hoje. Onde tantos professores já só conseguem levantar-se de manhã ou dormir à noite, ou sequer ir para a escola, porque estão sob o efeito de medicação.
Que realidade é esta? Os colegas professores estrangeiros que vêm a Portugal ficam abismados com a quantidade inacreditável de burocracia inútil a que nós estamos obrigados. As famílias dos professores estão sempre à espera de que estes desliguem os computadores e se lhes juntem.
Que vida é esta? É uma vida de desperdiçar pela janela um potencial incrível de professores experientes, motivados, cheios de energia e gosto pelo ensino, transformando-os numa massa de gente envelhecida precocemente, cansada, à beira de desistir, só à espera que o ano letivo acabe…
Continuem a inundar os professores de burocracia e cheguem à conclusão que, cronologicamente, coincide o estabelecimento de metas cada vez mais flexíveis para os resultados escolares com o aumento da burocracia inútil nas escolas.
Continuação de um bom ano letivo aos que ainda conseguem ir trabalhar todos os dias. Votos de boa recuperação aos cada vez mais colegas que, infelizmente, estão de baixa.
Prof. João Tavares, AE Frei João de Vila do Conde