Nos bastidores

Regresso à escola de onde parti há tantos anos atrás.

E é estranho regressar, pois, subitamente, deparo com muitos colegas que ainda se recordam de mim e me abraçam. Abraçam-me de uma forma tão genuína que fico comovida. Começamos o ano já atrapalhados com papéis, planificações e burocracias diversas que nos exasperam logo de entrada. Porém, neste regresso há também a cumplicidade e a promessa de que, juntos, conseguimos sobreviver às desditas que nos aguardam.

Preparo-me para abandonar o corredor dos reencontros espontâneos quando um rosto familiar embrulhado numa bata axadrezada me sorri.

– Ah! Então, é verdade! A senhora professora sempre está de volta!

É a dona Isabelinha, chefe das “assistentes operacionais”. Supostamente já devia estar reformada por esta altura, mas ainda por cá ficará muito tempo, para seu desconsolo e nossa tranquilidade.

A sua face, desde que me lembro, sempre teve este sorriso desenhado. O seu corpo, largo e generoso, cumprimenta-me com mais um abraço terno e familiar.

Lembro-me que sabia o nome de cada aluno de cor e era capaz de fazer o impossível por cada um que necessitasse de alguma coisa. Trazia comida de casa, roupa, materiais escolares, mandava controlar as refeições dos alunos complicados com olhos de águia, dava mimos aos pequenotes recém-chegados como se fossem do seu próprio sangue. Mas também era capaz de puxar as orelhas aos mais ariscos com a mesma reverência e entusiasmo com que os abraçava já adultos com os próprios filhos pela mão.

Com as suas colegas era tão rigorosa como justa com os seus pedidos, ou atritos, evidenciando uma simpática deferência para com os professores, à moda antiga. Foi várias vezes louvada pela direção, pelos colegas e por nós professores. Dizem-me que, apesar da distância e do tempo, manteve todas estas magníficas caraterísticas intactas. Mas ela queixa-se e com razão:

– Ó senhora professora, isto está tudo tão difícil, cada vez nos chegam mais meninos com fome, mal-educados… E nós somos cada vez menos, já viu? Depois mandam-nos o pessoal do IEFP sem formação… Parece que isto de trabalhar com crianças é para qualquer um…Child-holding-hands-with-adult-2

Sorrio e lanço-lhe uma piscadela de olho. Não, não é para qualquer um, só para pessoas especiais como a dona Isabelinha, cuja generosidade é tão grande que acabou de criar uma escala de funcionárias que vão mudar a fralda a uma menina em cadeira de rodas. Espantosamente, incluiu-se a si própria na tarefa, porque nenhuma das noviças que aterraram na escola queria assumir esse fardo.

A verdade é que também é graças a ela, à sua perseverança e teimosia que a escola sobrevive.

É pena que os senhores ministros da educação continuem a fechar os olhos às donas Isabelinhas das nossas escolas porque, quando elas existem, nunca fecham os olhos a ninguém. E sem dúvida, merecem muito mais do que um ministério que teima em decepar a alma da escola.

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4 comentários

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    • Fafe on 15 de Setembro de 2015 at 21:11
    • Responder

    Mesmo mal escrito, não se sabendo onde soluçar, louvo a substância.

    • Teresa Quintela on 15 de Setembro de 2015 at 21:41
    • Responder

    Parabéns pelo belíssimo texto e um bem haja a todas as Isabelinhas (poucas) que continuam nas nossas escolas.

    • Profhist on 15 de Setembro de 2015 at 23:20
    • Responder

    Verdadeiro e comovente…

  1. Magnífico texto, relato e conteúdo.

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