Roubaram-me tudo, menos a minha vontade.
O movimento repetitivo dos dias deixou-nos suficientemente hipnotizados para, simplesmente, ficarmos cegos.
Absorvidos no trabalho diário, quando regressámos, encontrámos a nossa casa vazia.
As coisas iam desaparecendo.
Foram sendo levadas aos poucos e, sem nos darmos conta, ficámos sem nada.
Procurámos por toda a parte pelos nossos melhores anos. Onde estavam…?
Estavam no jardim… no jardim onde morreram os verdes anos confiscados pelos que esmagaram os sonhos, as ambições e os planos de futuro que um dia plantáramos.
A mesa deserta exibe nua e desolada todo o pão que nos tiraram.
Na sala, já não encontramos o sofá onde, um dia, nos iríamos sentar quando as pernas nos faltassem.
Apenas sobram, nas estantes, os livros que, no meio das suas páginas – não guardando dinheiro –, reservam a riqueza das palavras, do conhecimento e dos sentimentos de uma vida dedicada ao ensino e à cultura.
O olhar das pessoas, nossas queridas, que nos observam do outro lado das fotografias poeirentas que restam espalhadas pela casa, lembram-nos dos sacrifícios que, pelo país, pelos nossos alunos, pelos filhos dos outros e pelos outros, os fizemos passar.
Recordamo-nos de cada prato, cada cadeira, cada cortina, cada livro que para aqui trouxemos ou que construímos com a sementeira do nosso conhecimento e dedicação, conquistados com tanto suor.
Ao fim de todos estes anos, só agora reparámos que assaltaram a nossa casa e que pouco ou nada deixaram.
Durante tanto tempo em que trabalhávamos, iam roubando o pouco que ainda nos restava.
Arrancaram-nos anos de trabalho, anos de vida e o esperado fim de vida digno pelo qual descontámos e o qual achávamos merecer. Fomos tão tolos em acreditar e dar guarida a lobos com pele de cordeiro, a ladrões de vidas.
Esvaziaram a despensa, o mobiliário desapareceu, as lembranças foram apagadas, a vida resumiu-se a nada, transformaram-nos em utensílios sem alma nem dignidade, sem passado nem futuro.
Foram atirando pedras para o nosso caminho de regresso a casa para que desistíssemos de cá voltar e não dessemos conta de tudo o que levaram.
A nossa casa foi ficando sem telhado, sem portas, nem janelas onde nos pudéssemos abrigar nos dias frios do inverno que se avizinham. Mas dizem-nos que nada disso nos fará falta; que não é nada que, um dia, no frio inverno da vida, uma mantinha não possa substituir.
Essa gente que vive em casas com telhados que arranham um céu que nunca conhecemos; que desconhecem o papel com tantas histórias de vida escritas por tantas pessoas com que nos cruzámos, sendo-lhes apenas familiar o papel-moeda que veneram; que nunca pisaram o chão de angústias que trilhámos quando caminhámos ao lado de tantos a quem demos a mão; que nunca sentiram o aperto no peito de tantos a quem não foi possível ajudar, a todos que não pudemos acorrer, àqueles que não conseguimos salvar; que não sabem os bocados de nós que deixámos espalhados por tantos lugares e por tanta gente ao longo do nosso caminho e do que recebemos em troca que não nos encheu os bolsos, mas consolou um pouco a nossa alma.
Roubaram-nos anos de vida, assaltaram-nos o passado e hipotecaram o nosso futuro, para poderem ter o seu futuro dourado.
Esta é a nossa casa, um lugar quase vazio onde nos tiraram tudo o que ainda nos restava e a honorabilidade que ainda nos mantinha de pé.
Em todos os cantos desta casa abandonada, há gente prostrada. Olho para as rugas de desencanto e solidão lavradas nos seus rostos por rios de lágrimas que já secaram e só encontro angústia e deceção. Muitos já não conseguem andar, mas tentam, pois, muito ainda falta percorrer nessa estrada que prolongaram até ao infinito. Pelos traços nas suas faces, podemos ver que estiveram lá, num sítio onde todos temos estado e que só nós conhecemos. Para nós, este é só mais um dia no paraíso das casas sem telhado enterradas em céus desabitados.
E tudo isto aconteceu devido a um erro; o erro de confiança; o erro de termos acreditado em quem, unilateralmente, alterou as regras a meio do caminho.
Mas o erro de todos os que nos enganaram foi muito maior do que o nosso ao acreditarem que o nosso edifício era apenas tijolo, ferro e vidro; cometeram o lapso de nos subestimar; cometeram o imperdoável erro de julgarem que nós somos esse edifício quando, na verdade, o edifício, somos nós; nós e aquilo que nunca conseguirão roubar – a nossa força de vontade.
E tu, que não te contentas com o pouco que te deixaram e já te apercebeste que foste humilhado e despojado, ergue-te, foste convocado. Convocado para correr connosco atrás de tudo o que nos tiraram. Não és uma vítima que irá passar o resto dos seus dias a lamentar-se do seu destino. És um sobrevivente! Por isso, foste ressuscitado e alistado de entre os mortos e moribundos para lutares pela tua vida e por tudo o que dela ainda resta. Vais te bater pelo respeito que te devem, pela dignidade que te tiraram, pelo amor próprio que um dia levarás para o sono eterno com o sorriso intocável que te irá fazer orgulhoso pelo modo como gastastes os dias que te foram dados entre os mortais; o sorriso do dever cumprido na luta contra a podridão que te rodeia e que não mais te irá consumir a alma.
Podem ter esvaziado a tua casa, mas voltarás a encher a tua alma, resgatar tudo o que tiraram, preencher a casa da educação e restituir para ti o respeito e a dignidade que te pertencem e, então, voltarás a encontrar paz.
Carlos Santos
9 comentários
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🌈👏🏻
Isto é um blog de educação, certo? Não é um folhetim literário, pois não?
Nem um consultório psiquiátrico.
A casa está vazia, mas cheia de nós e com a mesma vontade que nos trouxe para ela, logo devemos continuar a lutar por sobreviver nela e a ” alimentar-lhe a vida “.
E fomos todos votar PS outra vez!
Os vossos textos dramáticos sobre a situação que, qual drama clássico, assola a escola pública, SÓ O É porque, vocês, coleguinhas, permitiram tudo aquilo que vos mandaram cumprir nas escolas desde há décadas! São os melhores e maiores paus mandados do Estado. Por isso, vos mandei a todos às “favas”. Trabalhar com aceitacionistas acéfalos que se deixam, completamente, seduzir pelo PDEC (processo de desumanização em curso, vulgo digitalização), foi dos grandes motivos que me levou a ganhar um asco miudinho à sala de professores. O modo como vocês se vendem à normalização da vossa progressiva substituição em sala de aula, o modo como avaliam com cruzes, teclas e cagam para o pensamento crítico e criatividade, é um retrato do estado a que vocês chegaram. Depois vão para as manifestações fazer não se sabe muito bem o quê! Será pedir exigência na avaliação e o fim da digitalização como em alguns países civilizados da Europa começou a acontecer?…. E ainda votam no PS, dizem sempre por aqui os cheganos do costume…. Votem à direita que, se não o sabem, quer privatizar o ensino (o Chega mais que ninguém) e mandar-vos a todos com o caraçinhas mais velho!!! Força!
Finalmente, haja alguém que ainda pense!
Quem te metesse um molho de flores pelo c@… acima!!
Deves ser esperto é na cama, a dormir!
Devias ter andado a “correr” o país, a pagar duas rendas e a perder a família pelo caminho e nunca teres direito a subsidio de desemprego, isso eu gostava de ver, para não falares dos acomodados!
Até parece ter sido escrito para mim… ´«Ao fim de todos estes anos, só agora reparámos que assaltaram a nossa casa e que pouco ou nada deixaram…Arrancaram-nos anos de trabalho, anos de vida e o esperado fim de vida digno pelo qual descontámos e o qual achávamos merecer. Fomos tão tolos em acreditar e dar guarida a lobos com pele de cordeiro, a ladrões de vidas…..E tudo isto aconteceu devido a um erro; o erro de confiança; o erro de termos acreditado em quem, unilateralmente, alterou as regras a meio do caminho…Mas o erro de todos os que nos enganaram foi muito maior do que o nosso ao acreditarem que o nosso edifício era apenas tijolo, ferro e vidro; cometeram o lapso de nos subestimar; cometeram o imperdoável erro de julgarem que nós somos esse edifício quando, na verdade, o edifício, somos nós; nós e aquilo que nunca conseguirão roubar – a nossa força de vontade….Vais te bater pelo respeito que te devem, pela dignidade que te tiraram, pelo amor próprio que um dia levarás para o sono eterno com o sorriso intocável que te irá fazer orgulhoso pelo modo como gastastes os dias que te foram dados entre os mortais; o sorriso do dever cumprido na luta contra a podridão que te rodeia e que não mais te irá consumir a alma…..És um sobrevivente!…Podem ter esvaziado a tua casa, mas voltarás a encher a tua alma, resgatar tudo o que tiraram, preencher a casa da educação e restituir para ti o respeito e a dignidade que te pertencem e, então, voltarás a encontrar paz.» Obrigado Carlos Santos por partilhar este maravilhoso texto.