Dos Maias e Das Metas Curriculares

“Os Maias ”deixam de ser de leitura obrigatória no secundário | Educação | PÚBLICO

Nas aprendizagens essenciais para Português do ensino secundário, que irão substituir as metas curriculares, refere-se apenas que os alunos devem ler um romance de Eça de Queirós, à escolha do professor. Também na disciplina de História há conteúdos que vão desaparecer das aulas.

As obras de Eça de Queirós Os Maias e A Ilustre Casa de Ramires vão deixar de ser de leitura obrigatória no ensino secundário. É esta a proposta contida nas chamadas aprendizagens essenciais para a disciplina de Português do 10.º, 11.º e 12.º ano.

Estes documentos estão em consulta pública até 27 de Junho na página da Direcção-Geral da Educação. A partir do próximo ano lectivo, as aprendizagens essenciais vão substituir as metas curriculares aprovadas por Nuno Crato. A sua aplicação, que já foi estreada nas 230 escolas integradas no projecto-piloto da flexibilidade curricular, começará pelos anos iniciais de ciclo (1.º, 5.º, 7.º e 10.º).

Apesar de insistir que os programas das disciplinas continuam em vigor, o Ministério da Educação indicou ao PÚBLICO que os exames vão passar a avaliar “o que está disposto nas aprendizagens essenciais”. O que acontecerá já em 2019/2020 para os alunos do 11.º ano.

Segundo o ministério, as aprendizagens essenciais, que foram elaboradas pelas associações de professores, visam colmatar as dificuldades colocadas pela “extensão” dos programas curriculares em vigor e como esse objectivo “procurou-se identificar, disciplina a disciplina e ano a ano, o conjunto essencial de conteúdos, capacidades e atitudes” que os alunos devem dominar.

“Há uma diminuição das obras propostas para leitura, que coexiste com o alargamento das opções que podem ser tomadas pelos professores”, confirma a presidente da Associação de Professores de Português (APP), Filomena Viegas. No caso do 11.º ano, por exemplo, em vez de se referir, como até agora, que a obra de Eça de Queirós deve ser escolhida entre Os Maias ou A Ilustre Casa de Ramires aponta-se apenas que os alunos têm de ler uma obra deste autor.

O mesmo se passa, no que toca a obras narrativas, com Almeida Garrett, Alexandre Herculano ou Camilo Castelo Branco. E na poesia com Antero de Quental ou Cesário Verde. Em todos casos deixam de ser mencionadas obras específicas para se ficar apenas com a referência “escolher um romance” ou “escolher três poemas”.

“O que interessa é conhecer a obra do autor, pois qualquer leitura feita deve permitir fazer outras”, justifica a presidente da APP, adiantando que também nos exames nacionais “cada vez mais se está a deixar de privilegiar uma obra específica de um autor”. Também o ministério sustenta que “a avaliação da educação literária terá em conta o conhecimento da cultura literária e o conhecimento dos autores e movimentos literários, o que pode ser aferido com base em leituras diferenciadas”.

Dos géneros literários abordados no secundário desaparecem ainda os contos.

O “puzzle” de História A

Esta redução de conteúdos, também verificada nas aprendizagens essenciais proposta para o ensino básico do qual, por exemplo, desapareceu a herança muçulmana na Península Ibérica, volta a ser patente na disciplina de História A do secundário. O programa desta disciplina data de 2001 e não chegaram a ser elaboradas metas curriculares.

A professora de História e autora de livros e recursos educativos, Elisabete Jesus, recorda contudo ao PÚBLICO que no programa já está seleccionado “um conjunto de aprendizagens e conceitos estruturantes” que facilitaram a elaboração das aprendizagens essenciais. “Nalguns casos houve alguma da desejada simplificação, mas noutros temas fizeram-se ora acrescentos ora apagões, que podem comprometer a compreensão histórica”, frisa.

Por exemplo, refere, no 10.º ano desaparece o conceito de direitos humanos, que era até aqui abordado no módulo da “abertura europeia ao mundo” nos séculos XV e XVI onde se propunha, entre outros temas o do encontro de culturas e as dificuldades de aceitação da unidade do género humano”. Também no 10.º ano, no que respeita ao período da Idade Média, “eliminou-se toda a dimensão cultural (arte gótica, religiosidade, ordens mendicantes e confrarias, escolas, universidades…)”, apesar de posteriormente se propor aos alunos que problematizem a produção artística em Portugal, partindo do gótico-manuelino, aponta Elisabete Jesus.

“A imagem que me ocorre das aprendizagens essenciais é a de um friso cronológico em forma de puzzle. Um puzzle com algumas peças encaixadas à força, sem sentido, e um puzzle inacabado. Faltam-lhe peças”, conclui esta professora.

Um mal menor ou um recuo?

E quanto à Matemática? “Como acontece com todos os documentos que têm saído deste ministério, também as aprendizagens essenciais são extremamente pobres e vagas quanto aos conteúdos matemáticos”, comenta o presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, Jorge Buescu.

Este responsável aponta ainda para o facto de as referências programáticas existentes apontarem para o antigo programa da disciplina, aprovado em 2002, quando aquele que se encontra em vigor, e que foi sempre contestado pela Associação de Professores de Matemática, data de 2015. “Esta situação é de duvidosa legalidade e o Ministério da Educação terá de esclarecer qual o enquadramento legal destas referências”, aponta.

Em suma, conclui Jorge Buescu, as aprendizagens essenciais para Matemática A representam “um grande recuo”.

“Entendemos que, dadas as dificuldades que o actual programa de Matemática A está a trazer a alunos, professores e escolas, estas aprendizagens essenciais, estando longe do que consideramos uma proposta global coerente e articulada, é o menor mal que neste momento é possível termos”, afirma, por seu lado, a presidente da Associação de Professores de Matemática, Lurdes Figueiral, frisando que é “urgente avaliar as dificuldades e os problemas existentes e preparar as alterações necessárias e inadiáveis”. O Ministério da Educação já constituiu um grupo de trabalho para analisar o programa em vigor e propor um novo.

 

‘Os Maias’ já não são obrigatórios há pelo menos 16 anos

A partir do próximo ano letivo vão entrar em vigor as chamadas aprendizagens essenciais, desenhadas pelo secretário de Estado da Educação, João Costa, e que vão substituir as metas curriculares de Nuno Crato

Há pelo menos 16 anos, desde 2002, que as obras de Eça de Queirós “Os Maias” e a “Ilustre Casa de Ramires” não são de leitura obrigatória para os alunos do ensino secundário.

O programa de Português para o ensino secundário está em vigor desde 2014. Nesse ano, o então ministro da Educação Nuno Crato – que fez a última reforma ao programa e metas curriculares – estabeleceu que os professores do 11.º ano teriam como opção analisar e estudar com os alunos uma de duas obras de Eça de Queirós: “Os Maias” ou “A Ilustre Casa de Ramires”. Ou seja, entre estas duas obras os professores optavam por uma para analisar nas aulas.

Esta liberdade de escolha não existe, por exemplo, em obras como o “Sermão de Santo António aos Peixes” de Padre António Vieira ou “Frei Luís de Sousa” de Almeida Garrett. Estas sim têm caráter obrigatório no programa em vigor para o 11.º ano, sendo que estão inscritas no programa sem que os docentes tenham qualquer obra opcional.

E já antes, no programa de Português que esteve em vigor entre 2002 e 2014 “Os Maias” não eram obrigatórios. O programa desenhado pelo ex-ministro socialista Júlio Pedrosa definia que Eça de Queirós era estudado pelos do 11.º ano sendo que os docentes tinham liberdade para selecionar qualquer um dos romances do autor, não havendo qualquer referência obrigatória aos “Maias”.

Ao i, a presidente da Associação de Professores de Português, Filomena Viegas, confirmou que “Os Maias” “não eram obrigatórios”. No entanto, a obra foi adotada praticamente pela totalidade dos professores do secundário porque “é considerada a obra maior” de Eça de Queirós.

Também o secretário de Estado da Educação, João Costa, lembrou hoje à Renascença lembra que a obra de Eça de Queirós “Os Maias” já não eram de leitura obrigatória, “na medida em que as escolas podiam optar entre ‘os Maias’ e a ‘Ilustre Casa de Ramires’”.

O i tentou procurar os programas de Português que foram aplicados antes de 2002 mas não estão disponíveis na página da Direção-Geral da Educação, pelo que não é possível saber se “Os Maias” foram, ou não, obra literária obrigatória antes dessa data.

O que vai acontecer

A partir do próximo ano letivo vão entrar em vigor as chamadas aprendizagens essenciais, desenhadas pelo secretário de Estado da Educação, João Costa, e que vão substituir as metas curriculares de Nuno Crato. E com as aprendizagens essenciais são recuperados o programa e metas curriculares que vigoraram durante 2002 e 2014.

Ou seja, os professores do secundário vão voltar a poder escolher qualquer obra de Eça de Queirós, sendo obrigatório apenas o estudo do autor. O mesmo vai acontecer com outros autores como Almeida Garrett, Alexandre Herculano ou Camilo Castelo Branco. Em todos estes autores desaparece a  sugestão de uma obra específica para que seja analisada, havendo total liberdade de escolha dos professores.

Estas foram regras que estiveram em vigor no programa de Português que vigorou durante o período em que estiveram aos comandos do Ministério da Educação David Justino, Maria de Lurdes Rodrigues, Isabel Alçada, até à reforma de Nuno Crato.

A Associação de Professores de Português vê esta medida com bons olhos e acredita que desta forma os alunos vão ler mais. “O que interessa é conhecer a obra do autor e qualquer leitura que os alunos façam pode levar a que leiam outras obras”, diz Filomena Viegas.

 

Filomena Mónica: ″Professores formatados″ podem ser uma das razões para o fim de Os Maias como leitura obrigatória

O fim, ainda não decidido, de Os Maias enquanto leitura obrigatória no secundário não é um erro para Maria Filomena Mónica, estudiosa de Eça de Queiroz e da sua obra. O problema reside em muito nos “professores formatados.

 

A hipótese de o romance de Eça de Queiroz, Os Maias, deixar de ser leitura obrigatória no secundário não preocupa a especialista queirosiana Maria Filomena Mónica. Considera que é “uma obra muito difícil e longa” que não atrai a maioria dos alunos e que poderá ser substituída por outra do mesmo autor, por exemplo O Crime do Padre Amaro, que é mais acessível.

Sugere outras obras do escritor como possíveis para serem estudadas e que poderão dar aos estudantes uma impressão tão completa como Os Maias: “Há um conto do Eça, Alves e Companhia, que é completamente amoral e que os divertiria e deixaria bastante interessados na sua leitura.” No entanto, ao sugerir um conto deste autor, Filomena Mónica levanta a questão de as novas regras colocarem de fora o género do conto: “É incompreensível!”

Para a socióloga, o entendimento sobre um autor e a sua obra pode dar-se através até de um poema: “Aprendi a gostar de autores apenas através de um poema, isto porque os professores trabalharam muito bem os seus textos, e nunca mais deixaram de ser uma referência para mim.” É o caso de Cesário Verde, poeta sobre o qual já escreveu uma biografia: “Ele tem um longo poema, O Sentimento dum Ocidental, que se o professor o der em condições fica-se com uma opinião muito boa sobre o poeta e a obra.” Como uma das causas para o desinteresse dos alunos na leitura de Os Maias e destas possíveis alterações no programa de leituras obrigatórias, Maria Filomena Mónica coloca duas situações: “Os professores estão cada vez menos preparados para explicar aos alunos outras obras que não as mais óbvias, e isso vê-se refletido nos textos escolhidos para os exames. Os alunos, por seu lado, estão numa idade em que não se interessam assim tanto pela leitura e é preciso saber encaminhá-los para as obras, ora a maioria dos professores não o sabem fazer.”

Considera que os professores “estão formatados” para tratar os livros através de resumos e de guiões que existem, dando o caso do queirosiano Carlos Reis que “com os seus estudos definiu o modo de analisar as obras do autor de Os Maias e que os professores seguem por terem a vida facilitada”. Recorda que em Inglaterra, os alunos com a mesma idade dos portugueses leem obras de Eça de Queiroz e que não têm dificuldade em o fazer: “Eles aplicam-se e estudam o autor, portanto por cá pode acontecer o mesmo.”

Maria Filomena Mónica não deixa de recordar um texto introdutório que escreveu para a edição desta obra de Eça de Queiroz publicada na Texto Editora em 2004 e onde já afirmava: “Muitas vezes me tenho interrogado sobre a utilidade da elaboração de uma lista de livros recomendados pelo Ministério da Educação. Às vezes, penso até que o ideal seria a existência de uma compilação de títulos proibidos, à semelhança do que, em 1864, o Papa Pio IX fez com o seu famoso Index. É na adolescência, quando olhamos as coisas que os professores nos recomendam com desconfiança instintiva, que o fruto proibido se reveste de maior atração.”

Para concluir, Maria Filomena Mónica considera o escritor e Os Maias uma obra fundamental para se perceber o Portugal naquela época, tanto assim que no seu último livro, Os Ricos, o usou para explicar o país: “É certo que é muito grande e nem sempre fácil para os leitores mais jovens, contudo pode ser substituída por outras do mesmo autor.” E não termina sem se referir ao Plano Nacional de Leitura: “É uma estupidez como está.”

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