26 de Fevereiro de 2017 archive

CARNAVAL

O desfile decorre sob os auspícios de um dia de sol.
Os grupos sucedem-se com a luminosidade sobre os ombros, incrustada nas lantejoulas e purpurinas, nas cabeleiras acrílicas, nos sintéticos tecidos moles, acabados de estrear. Ao redor, uma turba de pais e familiares, uivando e obturando de êxtase e felicidade, acenam freneticamente.
Vejo passar os pókemons, as Princesas da Disney, Ladybugs, piratas e palhaços coloridos.
No entanto, vou observando o rosto das crianças, por entre a guarda de honra da multidão circundante. Espantada, vislumbro infantis frontes cerradas, faces rubras de desinteresse, irritação clara de descontentamento e enfado.
À minha memória surge, então, como um raio tempestuoso, uma memória há muito oculta, dos meus próprios tempos de gaiata. As máscaras eram um luxo, era o Carnaval muito antes de existirem lojas do chinês ou dos 300. A televisão tinha apenas 2 canais, em inúmeros lares, a preto e branco, e a diversão pura passava pelas telenovelas brasileiras, os jogos sem fronteiras, o festival da canção, a feira popular, os passeios de domingo que pediam roupa a preceito, por vezes ainda exalando o mofo dos fundo dos armários.
Ser pequena era a expetativa de um mundo de possibilidades e não as possibilidades de um mundo na nossa mão.
E o Carnaval era o momento em que todas as pequenas dimensões ao nosso redor se entretelavam, se tornavam quase possíveis.
Todos os anos eu pedia uma máscara diferente a meus pais. Todos os anos a resposta era a mesma, aviltando o desperdício de gastar tanto dinheiro só por um dia. E todos os anos minha mãe descia as escadas, batia à porta da solícita vizinha que, gentilmente, emprestava o vestido de espanhola que as filhas, agora adultas, tinham desprezado numa velhinha caixa de sapatos.
Com displicência e frustração, lá ia eu composta para a escola com um conjunto gasto de horríveis castanholas e um par de chinelas negras de salto meio alto, cobiçando as minhotas, as chinesas e, até, os cowboys.
Detestava umbilicalmente aquele traje vermelho coçado pelo tempo. Um ódio visceral que me fazia odiar o Carnaval por saber que, lá em casa, ninguém gastaria um escudo para que eu desfilasse com outra fatiota que não aquela, emprestada.

O Carnaval era um luxo, não uma necessidade ou um benefício adquirido por usucapião.
Contudo, tive de esperar diligentemente que a bainha que vinha até aos pés me chegasse ao joelho e que os cotovelos soçobrassem à renda. Só então consegui a pequena vitória de me ser prometido novo fato para o ano seguinte.
Um dia, pelo correio, uma emigrada tia, distante e desconhecida, ofereceu-me aquele que fora, talvez, o presente mais ansiado da minha ainda jovem vida e que me permitiria ir à escola e desfilar no Carnaval com o peito feito de orgulho: um vistoso vestido de princesa. O tecido de cetim azul cerúleo, decorado com linhas de lantejoulas fulgurantes, tule de teia e pérolas postiças desenhando o peito, multiplicavam o encanto.
O meu entusiasmo ampliou-se na expetativa da ansiada celebração. Contudo, no dia seguinte, depois do orgulhoso percurso para a escola, algo inusitado e terrível ocorreu. Sentada na carteira, insuflada pelos folhos e pelos tules, desmultiplicada pela rodinha acetinada, ergui-me do meu assento para seguir o cortejo. Mas, uma feroz e inusitada farpa, juro que regurgitada de propósito das entranhas do diabo da cadeira, prendeu-me o tule, o cetim e, numa dentada lancinante, rasgou-me, para sempre, a saia ao meio e o orgulho.
Depois disso, acabou-se o Carnaval, foi o vestido para o lixo e nunca mais me mascarei.
Volto a observar os garotos das fatiotas sintéticas cintilantes que prosseguem a marcha, arrastando nos pequenos pés confetis, palmas robustas e baba de avós embevecidas. O seu rosto impassível e indiferente, quase de um tédio primaveril, ignora tempos em que, de facto, a oportunidade de desfilar numa rua era, para inúmeras crianças, um pequeno luxo. No ano vindouro, renovarão o trajamento, desfilarão, talvez, com renovada displicência, enquanto os adultos regurgitarão eufóricos urras à sua passagem, invejando, todos eles, ter tido um momento como aquele nas suas vidas.

Mais atrás observo, porém, os mais pequeninos, todos numa fila de mãos dadas, pequeninas abelhas feitas de material reciclado: sorriem com os olhos tinindo de luz.
Sinto-me subitamente embevecida com a simplicidade das coisas palpáveis. Por vezes, complicamos tanto a vida onde ela não tem complicação nenhuma… Memórias e sonhos nebulosos que não levam a parte alguma.
A felicidade, sábia e fugaz, sabe esconder-se certeira em momentos inesperados.

Talvez o Carnaval seja apenas uma desculpa para lhe podermos espreitar o rosto feito de sol.

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Divulgação – PAIS E PROFESSORES À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS

PAIS E PROFESSORES À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS

(porque o melhor do mundo – nem sempre – são as crianças…) 

Parentalidade – Sucesso Educativo  – Inquietações…e  SOLUÇÕES !

 

O CENFIPE – Centro de Formação e Inovação dos Profissionais de Educação das escolas do Alto Lima e Paredes de Coura, mobilizando vários parceiros – organiza em 2017 mais um evento marcante no campo da Educação. Trata-se de um Ciclo de Conferências que numa primeira fase (2017) será realizado nos Concelhos de Ponte de Lima (25 de Março) e de Arcos de Valdevez (27 de Maio) e já em 2018 em Paredes de Coura e Ponte da Barca.

No presente Ciclo foram convidados especialistas de diferentes áreas para discutir questões centrais inerentes à parentalidade positiva, bem como,  ao sucesso educativo e ao papel da escola : Álvaro Laborinho Lúcio, Paulo Flor (PSP), Alexandre Quintanilha, Renato Paiva, Cristina Valente, Alexandre Castro Caldas, Jorge Pina, Vítor Paulo Pereira, Jorge Costa (Secretário de Estado), Jorge Rio Cardoso, Adelino Calado, Helena Canhão, Carlos Neto, Rute Sousa Vasco, Adriano Moreira e os Jornalistas Carlos Daniel (RTP) , João Fernando Ramos (RTP),  Júlio Magalhães (Porto Canal) e Ana Guedes (Porto Canal)

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