Os chumbos servem para estigmatizar, punir e marcar. Não há, como noutras, qualquer democracia nesta premissa. E não: muitas das vezes, os problemas não caem na escola. Uma significativa parte dos problemas volta à escola (porque o que vai, volta).
Quando é que o chumbo é sinónimo de rigor e de exigência?
A resposta, a meu ver, é simples: nunca. A escola poderia ter, acima de tudo, uma matriz social, humana e civilizadora. A escola foi transformada num aparelho pesado, com outros interesses (como se fossem fábricas de cidadãos de diferentes categorias de importância). Uma medi(a)dora de capacidade de sacrifício e acatamento?
Uma criança ou um jovem não são obrigados a gostar desta escola. Aliás, é saudável que não gostem. Se a educação é compulsória, então é a escola que precisa de cativar as crianças e os jovens. A motivação nunca vem com as mochilas.
Como é que se transforma informação profundamente truncada em conhecimento integral? “Rigor e exigência” – este sistema, assente no acatamento acrítico, fatiado em disciplinas a que se dão, há demasiado tempo, roupagens de 1.ª, de 2.ª e de 3.ª. Não poderia ser fomentada, desde cedo, dentro da realidade do respeito pelo trabalho, a liberdade de escolha adaptada às circunstâncias? Encorajado o poder da iniciativa? Da vontade própria? Da descoberta? Da curiosidade? Da criatividade?
Onde estão as práticas da autodescoberta e da inteligência emocional, sem a qual não sobram grande coisa? Somos receptores de informação, mas para o quê? Qual o intuito? O que é que esta informação fará por nós, e nós por ela? O que é que acrescenta? Qual a utilidade? Podemos debater acerca da sua pertinência? Não podemos escolher, dentro de uma área, o que explanar? Conhecermo-nos primeiro, antes de conhecer o(s) outro(s). Sem ideias pré-concebidas, sem veredictos à priori: sem pressupostos, sem tábuas rasas ou dados adquiridos.
Na década de ‘20 do século passado, já Abel Salazar, médico e professor (e pintor, e por aí), homem notável em qualquer tempo, era original na forma como conduzia as aulas, defendendo um ensino aberto, apoiado na observação, na investigação e na discussão científica, promovendo o autodidactismo dos alunos. Há cem anos!
Que paternalismo é esse, o de se achar que outros, que se saíram bem num sistema eminentemente desinteressante, mesquinho, amorfo, marrão, repetitivo, fomentador de desigualdades e de invejas é que sabem sempre o que é melhor para quem está ainda na escola? Com que direito se transformou uma conquista democrática, como permitir que todos possam ter acesso àquilo que deveria ser uma oportunidade, numa máquina debulhadora?
E os que querem outras coisas? E os que precisam de outras coisas? E os projectos verdadeiramente diferenciadores, que valem menos do que um teste ou um exame, mas que, ao contrário desses, motivam e não criam situações de stress, mal estar e competição?
Leio e ouço comentários, de dentro da máquina, e vejo muito receio de obsolescência. Confunde-se, desde logo, o incentivo ao pensamento com o “ensinar a como pensar”. Depois, a legitimação, pela exclusividade, no acesso às oportunidades: crer que os bons alunos (sejam lá o que forem) merecem mais oportunidades do que os alunos assim-assim ou os alunos fracos é acreditar que a ordem natural das coisas depende de um coador social aprimorado pelo sistema educativo. Isto levanta uma enorme questão: passamos anos a fio a ouvir que a educação é um ascensor social, quando, na verdade, não passará de uma peneira.
É que com o sistema como está, é preciso alimentar a “inevitabilidade” dos empregos mal remunerados, a falácia das “qualificações” (porque qualquer emprego ou trabalho é qualificado) e a legitimação das diferenças sociais: a pobreza também é um negócio.
Não pode haver elefantes no meio da sala, nem vacas sagradas: tudo pode ser discutido. Algo que é visto como eminentemente bom poderá não o ser. Muitas vezes não o é. Algo que promove meia dúzia e deixa cair a larga maioria é uma doença. Porque se recuarmos uns anos, perceberemos que foram repetidores de informação acríticos e “altamente qualificados” que perpetraram eventos como o Holocausto e outras guerras e tragédias. São repetidores de informação altamente qualificados que afundam o mundo, moral e eticamente, dia após dia.
Um sistema educativo sem estudos das emoções, empatia, ética, moral, equidade e solidariedade não serve. Um sistema educativo que privilegia a sanha classificativa, os rótulos (uma espécie de cadastro), colocando como acessório o que escrevi no início deste parágrafo, é um reprodutor cultural de desigualdades.
Os chumbos servem para estigmatizar, punir e marcar. Não há, como noutras, qualquer democracia nesta premissa. E não: muitas das vezes, os problemas não caem na escola. Uma significativa parte dos problemas volta à escola (porque o que vai, volta).
A escola tem um papel importante na forma como reproduz a sociedade. Se queremos que ambas progridam, pois que sirva para nos descobrirmos, para evoluirmos enquanto cidadãos do futuro, com ética, autónomos, curiosos, criativos, críticos e conscientes: lúcidos. E com respeito pelo(s) outro(s).
16 comentários
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Pelo que li a escola está a mais, é nefasta, não devia de existir pois limita a liberdade individual a todos os niveis.
A escola é necessária para promover a igualdade de oportunidades. Um caminho longo.
Poderia dizer muita coisa. Até mesmo do termo usado “chumbo”. O conhe a aprendizagem pode e deve ser vista como um todo mas tal faz com que haja fatiação do mesmo. Sem mais acrescentos, deixo apenas o meu caso pessoal, como aluno. Se no 10° não tivesse reprovado a Matemática, ou seja se tivesse tido um “dez para empurrar para a frente” hoje em dia não saberia um décimo da Matemática que aprendi.
O dramaturgo “Paulo Gonçalves” está a fazer do “chumbo” um … drama.
Não percebi qual o papel que Paulo Gonçalves ocupa no sistema educativo.
Será que numa cirugia o médico também pede a opinião ao doente sobre onde deve operar?
E eu a pensar que não se devia “chumbar”, nunca, por causa de rankings e estatísticas para mostrar em Bruxelas, por causa de um idealismo bacoco travestido de progresso, para a escola pública se vingar das médias compradas no privado, ou então para evitar a redação de mais uma justificação anexa à ata. Também achava que não se deviam fazer testes porque, sendo meros instrumentos de catalogação, nunca fizeram nada para incentivar o estudo e enriquecer a memória.
Afinal, não se deve “chumbar”, nunca, para dizer àquele aluno que trabalhou e se esforçou ao longo do ano, que não tem de o fazer. Que a justiça, como o rigor e a exigência, são apenas índices de uma escala, e de uma escola, que reprime.
No privado é o mesmo. Não se iluda.
Os privados (nem todos, é certo) são a origem da fraude classificativa na avaliação dos alunos.
Par a maioria dos alunos chumbar não serve de nada. Ainda é pior.
Agora, andar um ano inteiro entupido em papéis e reuniões a fazer planos e mais planos a fazer de conta,… (Já não bastava os assumidamente deficientes que apesar de tudo eram menos…)
Como se não bastasse , chega-se ao fim do ano ainda se tem de levar com os “colegas” que fazem nada de útil, mas vão para as reuniões dizer mal de tudo e com as chefias a pressionar para passá-los de qualquer forma.
E depois continuamos a ser enrolados no faz de conta, a preencher relatórios e mais relatórios onde só apetece dizer que realmente foi tudo um sucesso, os alunos passaram todos, ficaram todos sobredotados .
Toda a gente sabe o que se passa e na verdade os acólitos do partido socialista estão-se a cag** para os professores. O que os motiva são as suas vaidades contruídas através de currículos de merd***…. Por isso apreciam inventar formações para professores assistirem, pseudo projetos inuteis para os professores executarem, curriculos e legislação absurda para os professores aplicarem….
A triste realidade de ser professor em Portugal. Ganha-se mal. Mas ao menos mandem essa gentalha incompetente e vaidosa que lá anda no Ministério da deseducação para o olho da rua!
Possa, já buscamos opiniões em todo o lado!!!! Por que será? Quem paga? Falácia da autoridade…
Nem quero contra-argumentar… BASTA!
Querem ver que o “chumbo” é o último resquício do “fascismo” que “abril” ainda não conseguiu eliminar…
so sei uma coisa, sem consequências quase nada se cumpre na vida…
O autor, sendo de Guimarães, deveria saber que foi com um “chumbo” que se iniciou a portugalidade. E andam estes comentaristas a “estigmatizar” os que eles pensam que “estigmatizam”.
Esquece, Paulo, já és o que és desde que nasceste voltado para o Castelo! Escreve sobre teatro e deixa a escola em paz!
Não estou de acordo, na globalidade, com o texto. Visão enviesada.
É por causa destas alarvidades, que chegam a ministro que temos o ensino que temos. Não quero isso para o meu filho, quer raciocínio, memorização, esforço, trabalho, professores amigos que dêem elogios mas também que lhes diga está mal, volta a fazer.
Já agora, porque prender um criminoso, a prisão não é solução. E tratar um doente, fazê-lo passar mal com medicamentos e tirar sangue e… e …
Em Portugal alunos que se didecam autonomamente são poucos, a grande maioria não quer fazer nada.
Conselho: saiam dos gabinetes e apareçam de surpresa nas escolas, e escolham turmas que o professor mais demorado que tiverem na escola diga para irem conhecer. Ai sim vocês entram numa nova era e num novo mundo.
Há 2400 anos, Platão, na altura idoso e rabugento,no livro VII das Leis, dava a sua definição de analfabetismo científico: Quem é incapaz de contar um, dois, três, ou de distinguir os números ímpares, ou quem é incapaz de contar seja o que for, ou de fazer cálculos com a noite e o dia e aqueles para quem a revolução do Sol, da Lua e das outras estrelas é totalmente alheia…Todos os homens livres , creio eu, deveriam aprender tanto sobre estes ramos do conhecimento quanto se ensina a cada criança no Egipto quando aprende o alfabeto. Neste país, os jogos aritméticos foram inventados para uso das crianças, que os aprendem com prazer e divertimento…Eu…já com uma idade avançada, ouvi com surpresa falar da nossa ignorância sobre estas matérias; quanto a mim, parecemo-nos mais com porcos do que com homens e sinto-me envergonhado, não só de mim mas de todos os gregos.” – Sagan, Carl, in “Um Mundo Infestado de Demónios”, Ciência Aberta, Gradiva, 1ª edição,1997, pág.21.
“Na geração que cresceu habituada às multitarefas, na era digital, os limites superiores da atenção no cérebro humano encontram-se em rápida expansão, algo que provavelmente levará à alteração de certos aspectos da consciência num futuro não muito distante, se tal não tiver já acontecido. Expandir a atenção traz vantagens óbvias, e as capacidades associativas geradas pelas multitarefas trazem vantagens espantosas; em contrapartida, poderá haver um custo em termos de aprendizagem, consolidação de memória e emoção. Não temos ainda ideia de qual poderá ser esse custo” – António Damásio, “O Livro da Consciência”.
Cada geração preocupa-se com o facto de os padrões educativos estarem a baixar.
Quando se tem uma pedra no sapato, não adianta ir ao médico pedir analgésicos, não adianta fazer aromaterapia, não adianta hipnose, não adianta nada que não seja: retirar a pedra! A “pedra” neste caso é um ensino liceal, oferecido, sem critério, a todos os alunos, independentemente das suas aptidões e inclinações.
Aboliram o Ensino Técnico, porque era “fascista” os meninos não serem todos doutores, e agora a indústria das “Ciências da Educação” alimenta-se… da “pedra”. Enquanto os professores ficam com o angustiante dilema de “chumbar” ou não alunos que nem compreendem as matérias que lhes são impostas.
Há 15/20 anos eu era um dos professores que pensava que marcar faltas aos alunos do ensino secundário não fazia sentido. Hoje penso que se não houvesse faltas haveria alunos que nunca apareciam na escola (talvez a maioria) e só no 3ºperiodo pensaria nas consequências.