Um não, dois. Dois esgotamentos nervosos. O primeiro durante o estágio de ensino, aos 21 anos, não sei se por pressão dos alunos, por medo dos alunos do bairro da Musgueira, a pressão do trabalho, a planificação das aulas ao segundo, as expectativas da escola, a vida a sério num repente atirada à cara, toda de uma vez só. Já não há livros para onde fugir, já não há aulas ou professores para me proteger, agora sou eu o professor, só e órfão, a fazer malabarismo com um turbilhão de emoções, as minhas, as dos alunos, as do mundo.
E eu no meio do turbilhão sobre a linha do equador a ouvir para sempre os gritos de dois exércitos ao encontro um do outro no sítio onde estou daqui por três, dois, um e o meu corpo é enrolado para a frente e para trás num inferno de carne e sangue e morte, espadas contra espadas, lanças contra lanças, corpos indiferenciados numa centrífuga permanente e de repente acordo. Todas as noites o mesmo sonho, a ansiedade de quem não quer dormir, o medo de acordar, não quero ir trabalhar, se não dormir também não acordo, o coração a mil na casa de banho a deitar tudo cá para fora antes da primeira aula.
Quando o esgotamento chegou, tive de aprender como se põe uma mesa, ao meu ritmo, sem pressões nem medo, devagar, não está ninguém à espera, não está ninguém a ver: o garfo à esquerda, a faca, e depois a colher, à direita seguidos do guardanapo, a colher de sobremesa ao centro, por cima, a apontar para a esquerda. O médico não quis falar comigo: antidepressivos (benzodiazepinas) e comprimidos para dormir, tão pequeninos, desfazem-se na língua.
Três meses a dormir sonhos sem sonhos, tudo negro, não há libido, não há vontade, não estamos nem vivos nem mortos, andamos para a frente e pouco mais. O estágio chegou ao fim e o curso também e durante um ano não voltei a Lisboa.
Não voltei ao médico para fazer o desmame das benzodiazepinas, deixei de as tomar de um dia para o outro e durante 48 horas vivi dentro e fora do corpo, tudo ao mesmo tempo sem ter muito bem a certeza de mim mesmo.
O segundo esgotamento aconteceu depois da morte do meu avô. Outra vez os antidepressivos e os comprimidos para dormir, a falta de libido e de tudo, um morto-vivo a não dizer coisa com coisa, a querer chegar ao fim do ano. Mas se desta vez não tive de aprender a pôr a mesa, em vez de três tive seis meses de loucura cósmica e o desmame à minha espera no fim. Já não tinha a mesma força.
Desde o segundo esgotamento já passaram 17 anos. De então para cá aprendi a ler os sinais de como está na altura de parar e ninguém é feito de ferro: as gengivas inchadas, os sintomas de gripe, mas sem gripe, o corpo dorido, uma constipação repentina. E como a vida se encarrega de nos afogar num tanque de compromissos e obrigações, começo a cancelar e a pontapear compromissos e obrigações à esquerda e à direita, doa a quem doer. E paro.
3 comentários
Meu Deus, como o compreendo.
Também eu já passei por isso e vivi num buraco negro durante mais de um ano….tive ajuda, tive os meus”pilares”, que me sustiveram. Hoje, embora consciente de que o precipício espreita a qualquer hora e me apanha de surpresa, de vez em quando, paro e olho para o lado e também para o meu passado! Quero, a toda a força, preservar a minha saúde mental (e física!) Relativizo muito mais e imponho a mim mesma não ser tão exigente comigo , – quiçá tão profissional?! – (desculpem a sinceridade!) e que ninguém me reconhece a minha entrega e a minha dedicação. Enfim, penso também em mim, pois só tenho esta vida para viver! A isto me obrigam todos os dias!
Ora nem mais! Nem sempre somos reconhecidos e somos tantas vezes maltratados. Um país como o nosso, que não respeita os professores, vai colher o que anda a semear. Pensemos sempre no bem mais precioso, a nossa saúde!