As práticas baseadas em traumas de acordo com o Berry Street Education Model

 

Às vezes penso nos dias de escola e sinto-os de uma outra pessoa, uma memória emprestada de um tempo quase absurdo de salas de aula rígidas de carteiras em fila onde cabíamos ombro a ombro à espera dos farrapos da aprendizagem descidos das alturas para nos acertar as cabeças e fazer qualquer coisa de novo.
Na óbvia ausência de tal milagre, eu vivia por iluminar as horas a fio passadas a copiar parágrafos em cadernos esfolados, ouvindo a professora debitar datas e fórmulas enquanto o mundo lá fora parecia chamar-me.
Olhando agora para o Berry Street Education Model, de autoria australiana, fico a pensar como talvez e finalmente alguém tenha entendido não serem as crianças meros depósitos.
Não são baldes vazios para encher com fragmentos de conceitos e tópicos. Ao contrário, são pequenos reservatórios de caos e sentimento previamente cheios pela vida e antes da primeira aula do primeiro professor.
São os medos de casa, as tristezas na família,
os desgostos, as raivas ainda sem nome e já de olhos cheios a transbordar de gritos e lágrimas, ou, pior ainda, em silêncio.
O Berry Street Education Model vem assim introduzir práticas baseadas em traumas,
partindo da premissa de muitas das crianças viverem já marcadas seja por acontecimentos vividos ou pelo simples peso de viver, construindo-se em torno de domínios tão práticos quanto poéticos: corpo, carácter, aprendizagem social e emocional, compromisso e previsibilidade.
Se há quarentena anos anos alguém me dissesse ser a escola um espaço para o fortalecimento do carácter de cada aluno, talvez risse. Para nós, carácter cabia apenas aos bravos a aguentar tudo calados e sem abrir a boca.
Agora, carácter não é sinónimo de resistência muda mas o capacitar do aluno para entender a sua constituição, os seus princípios na procura de uma direcção e um propósito de modo a dar sentido ao objecto de estudo.
E tudo porque os professores ao redor das crianças limitam-se ao raro e simples acto de escutar.
Igualmente curioso é o facto do modelo falar tanto da importância do relacionamento e os professores como os melhores terapeutas, guias para ajudar cada criança a encontrar-se num mundo onde tantas se perdem antes sequer de começarem a procurar.
Imaginem entrarem numa sala onde crianças aprendem a respirar fundo em grandes golfadas de ar antes de começar a aula, como quem se prepara para uma batalha, mas a batalha é interior, uma guerra contra o caos às vezes cá dentro a toldar quanto está diante de nós.
E os professores, em vez de impor uma disciplina, preocupam-se em criar laços de modo a conhecerem os desejos e as inseguranças de cada aluno e difícil é ensinar alguém a sonhar.
E se de acordo com o Berry Street Education Model os erros são oportunidades, onde está a liberdade nas salas de aula para dizer a uma criança como errar não é o fim do mundo e a falha não a define mas alumia o caminho em diante?
De outro modo, os miúdos, pequenos de corpo mas já velhos de espírito, continuarão a desistir antes de começar, mudos e calados a fugir da humilhação.
Pois só através do erro se aprende a resiliência, a capacidade de continuar quando o chão é um pântano. Eu, se pudesse voltar à escola, talvez gostasse de experimentar uma sala de aula onde se aprendesse a resiliência, não a do orgulho teimoso e seco de lágrimas mas a de quem é frágil e, ainda assim, avança. Quantos de nós teriam tomado outros caminhos?
Este modelo fala também do compromisso de cada professor em reconhecer cada aluno como um universo, só e à espera de quem abra a porta para olhar com olhos de ver e onde as actividades não são adaptadas ao aluno mas feitas com o aluno, um participante activo e com voz.
Ao aluno permite-se conhecer as próprias forças, criar um sentido, um propósito, um valor individual mesmo quando nos chamam loucos e os outros riem.
Em súmula, e aqui passo igualmente o testemunho ao meu colega do lado de lá deste texto, este é um modelo educativo onde o coração humano, o coração de uma criança, é um terreno cheio de raízes escondidas e cuja travessia implica a partilha e vivência dos mesmos com todos os seus riscos e benefícios.
E a escola, afinal, não é senão uma tentativa de trazer alguma luz a esse terreno, ensinando cada um a achar o seu caminho, mesmo se tortuoso, mesmo quando a luz é escassa, luz essa por demais pequena mas certa de nunca se apagar, não enquanto estivermos presentes.

https://www.berrystreet.org.au/learning-and-resources/berry-street-education-model

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3 comentários

    • FR on 3 de Novembro de 2024 at 20:39
    • Responder

    O que os meninos precisam é do regresso do Chumbo.
    É com o erro que se procede à correcção da trajetória!

    • maria on 4 de Novembro de 2024 at 19:50
    • Responder

    E nesta equação entra a “educação” especial

    Grande parte dos alunos “referenciados” (raio de palavra) nesta especialidade , NÃO têm (felizmente) o perfil para serem tomados como tal. A “educação” especial destina-se apenas e só ( ver o 54) a crianças com deficiência profunda e não àquelas que , por qualquer razão, não aprenderam nos ciclos anteriores o que deveriam ter aprendido.
    Com as “referenciações ” a esmo , a brincadeira traduz-se numa despesa brutal para os contribuintes – são quase 8.000 professores ou “professores” a entreter crianças e a inundarem com papéis e mais papéis os desgraçados dos professores das disciplinas convencionais. Mas quantos mais “referenciados” houver , mais lugares ou empregos se arranjam nessa “área” né?
    Quem põe termo a isto ?

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