O mal-estar escolar e a mobilidade como fuga

Haverá sempre muitas razões para mudar de escola. No entanto, basta estarmos atentos, e ouvirmos as estórias à nossa volta, para percebermos do mal-estar escolar que alastra como mancha.

O mal-estar escolar e a mobilidade como fuga

Em homenagem a Santana Castilho e à sua dedicação à educação e a perspetiva fortemente crítica e humanista de tantas das suas crónicas.

O ‘mal-estar dos professores’, assim como ‘mal-estar dos estudantes’ são temas recorrentes de há muito tempo. A educação é um daqueles sectores de instituições compactas em que estão face a face grandemente duas equipas: neste caso, a dos professores e a dos alunos. Muitas vezes a política de educação vai alternando entre a culpa de uns e a desculpa de outros, mas raramente centra a sua atenção nas instituições na sua complexidade: ou seja, nas comunidades escolares, na cultura e clima organizacionais da escola e no tipo de liderança.  Ora, muitos dos actuais problemas do sector são complexos e implicam essa análise reticular.
Em Portugal, no presente, o professor vive num paradoxo, uma vida desalinhada: se, por um lado, é alguém a quem é solicitado quase tudo em sala de aula e em relação a alguns alunos (pai/mãe; tutor; educador; assistente social; psicólogo; etc.); fora da sala de aula e da relação com alguns alunos, a vida é demasiadas vezes por demais despojada, pela míngua de tanto e por viverem tanto entre paragens. A alma cheia já não compensa a vida tantas vezes envergonhada. Mas para cúmulo, muitas vezes na sua escola, onde deveria ser acarinhado, é tratado como um mero funcionário e é, até, por vezes, o elo mais fraco da instituição escolar. Portanto, “se estás mal muda-te!”, como se costuma dizer, e há mesmo directores que fazem tudo para que determinados professores se mudem. E é isso mesmo que podemos constatar nos concursos internos.

O concurso interno 2024/25 em curso para todos os professores do ensino não superior e cujos resultados sairão no final deste mês de junho, se por um lado apresenta um número bastante acrescido de vagas, o que é muito positivo, possibilitando a muitos professores aproximação à residência, pode também dar-nos alguns indícios, tal como outros anteriores,  acerca deste mal-estar escolar e de uma mobilidade como fuga. Há, segundo julgo entender, dois grandes universos neste concurso. Por um lado, temos os docentes que sendo efetivos numa determinada escola e estando colocados noutras escolas (ao abrigo de justificações várias), procuram nestes concursos ficar efetivos numa escola mais perto da sua residência. No entanto, há todo um outro universo de docentes que concorrem por pretenderem sair da escola, mas que não seria de esperar que o fizessem, quer porque a) pretendem sair da escola em que estão efetivos há muitos anos; b) estão já perto da idade de reforma e, ainda assim, pretendem sair; c) pretendem sair para uma escola mais distante da sua residência ou d) pretendem sair …para a escola ao lado. Portanto, aqui temos uma oportunidade para associações de professores, a confederação das associações de pais, os sindicados, o conselho nacional de educação, a tutela e todos os que considerem que a educação é central, contribuírem em função de um estudo sociológico que se impõe. Desde logo podemos fazer um ranking das escolas em que mais professores concorrem para sair. Claro que tal ranking não nos dirá o suficiente do mal-estar escolar. Tornar-se-á necessário ouvir os professores para saber das razões certas. Daí teremos facilmente não só uma fotografia do que está mal nas escolas mas também indicar-nos-á, especificamente, algumas escolas que corporizam de forma mais clara esse modelo do mal-estar escolar.

Só para se ter uma ideia, neste concurso do total de 46.089 candidatos, 16.972 (36,82%) são professores efetivos do quadro de escola. Destes, 58,34% têm entre 50 e 60 anos e 17,48% têm 60 ou mais anos! Ou seja, temos muitos professores efetivos (porventura demasiados) a concorrer para mudar de escola a menos de 10 anos da reforma.*

Haverá sempre muitas razões para mudar de escola. No entanto, basta estarmos atentos, e ouvirmos as estórias à nossa volta, para percebermos do mal-estar escolar que alastra como mancha. Vejamos alguns exemplos que se repetem.

Há escolas que tinham ‘clubes’ que desapareceram. Resultado do empenho e de um compromisso vocacional com a educação de professores específicos estes ‘clubes’, que possibilitaram experiências educativas fundamentais na vida dos jovens, desapareceram em alguns casos devido ao ambiente escolar criado, ao tipo de gestão, à inflexibilidade, ao não possibilitar horas para tal actividade… .

Um outro exemplo: professores vocacionados para dar aulas apenas ao Ensino Básico (do 7.º ao 9.º) ou, ao invés, que têm a sua maior motivação em dar aulas ao Secundário (10.º a 12.º) e que (às vezes sabe-se lá porquê!) são obrigados a dar aulas também no outro grau. Não entendendo a razão, os professores sentem-se mal tratados, perdem a motivação e colocam em causa o seu compromisso profissional.

Um outro aspecto é o da distribuição de turmas e horários que se esperam em cada ano com uma ansiedade em que as expectativas tanto pedagógica e profissional (acompanhamento das turmas de um para outro ano) quanto de conciliação entre vida profissional e familiar (que se sentem sempre em risco) se vêm tantas vezes goradas em função de decisões que não são entendidas como racionais.
Outra estória recorrente é a de professores que dedicaram décadas da sua vida (com prejuízos para a vida pessoal e familiar) a uma escola e que se reformam sem uma palavra dos directores, sem um agradecimento, nada! Funcionários descartáveis no final de contas! E que para os demais professores servem, claro, como pré-avisos e estórias morais, colocando em conflito o seu compromisso profissional vocacional em face da realidade institucional e, especificamente, da gestão dos agrupamentos. O que se evidencia é a operarialização dos professores em agrupamentos-fábrica.

Quantos professores querem sair das escolas onde estão? Quais as razões pelas quais não saem? Quantos professores só não saem para não claudicarem perante um óbvio abuso de poder dos directores? E quantos não saem por questões de proximidade à residência e tal ser fundamental por necessidade de apoio familiar, seja a pais, filhos ou netos? Quantos professores não concorrem com medo de represálias, caso não sejam colocados e lá continuem? E quantos professores, apesar de tudo, concorrem para sair e a que custos? Quantos concorrem a mudança de escola já perto da reforma? Quantos concorrem a mudança de escola até para mais longe da sua residência de família? Quantos concorrem para leccionar em graus de ensino que não são os seus preferidos? Em suma quanta mobilidade em fuga se esconde nestes concursos internos de professores?

Mas não se trata só dos professores, mas também dos funcionários administrativos! Quantos sentem o peso do mal-estar escolar? Quanto já tentaram sair: de uma escola para outra ou mesmo para outros sectores da administração? Quantos receberam o não da direcção em relação a esse desejo de mobilidade?

Em suma, quantos profissionais estão presos numa escola e como tal aprisionamento tem efeito sobre as suas vidas, as vidas dos demais colegas de trabalho, sobre a comunidade escolar como um todo. Que educação podemos ter se os professores vivem um ambiente educativo que sentem como de abuso de poder e violência? Que educação podemos ter enquanto ensino para a liberdade? E, neste texto, abordamos o caso dos professores do Ensino não Superior porque no caso do Ensino Superior a mobilidade nem sequer é possível, praticamente.

E como é que as lideranças escolares são avaliadas em função de todos estes aspectos? Cada indivíduo é as suas circunstâncias, ou seja, a relação (abusiva ou não) que se estabelece entre a direcção de uma escola e um determinado professor-funcionário ou funcionário administrativo é muitas vezes até desconhecida para os colegas (pelos menos em todas as suas facetas). Assim, como não há uma auditoria às razões de mobilidade docente e à centralidade da gestão escolar em tais processos, a má gestão de recursos humanos e das escolas enquanto comunidades humanas não é avaliada e, portanto, todos os abusos absurdos não entram na avaliação externa das escolas. Não só esta falta de escrutínio é uma cumplicidade com a violência porque a permite e permite a sua reprodução e a sua impunidade, mas também, devido a tal falta de escrutínio e ao desconhecimento das boas e más práticas de gestão de forma clara, as mais das vezes os professores efectuam uma mobilidade às cegas: “Se calhar vou para uma escola pior, mas estou tão farta disto!”

Cada um de nós enquanto indivíduo tem a oportunidade ao longo da vida de estar do lado da violência ou da sua recusa. Mas este deve também ser um desígnio central de várias instituições responsáveis e, claro, de toda a política e, especificamente, da política educativa.

Paulo Castro Seixas

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16 comentários

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    • João on 24 de Junho de 2024 at 9:54
    • Responder

    Um artigo muito interessante e muito bem escrito. Há, no entanto, um facto que também deveria ser apontado. Os professores de QZP foram obrigados ser opositores a concurso para transição para QA ou QEnA, o que levará a situações muito complicadas e lesivas para os docentes que se verão vinculados a escola mais longe da sua residência. Sou quadro de escola e também estou a concurso (revejo-me em muitas das razões invocadas – são por vezes cumulativas). O assedio profissional docente é cada vez mais frequente com os egos tirânicos e despóticos dos “Diretoires”. Há verdadeiras estruturas PIDESCAS e sistema de BUFOS que leva a que hoje em dia as escolas sejam o exemplo de que o 25 de Abril não está presente em todo o lado. Enquanto as escolas não tiverem um modelo de gestão democrático e um modelo de avaliação do desempenho docente feito por docentes que não conhecem o avaliado as SADDICAS estruturas serão sempre o centro das represálias e a força das pequenas ditaduras que são as escolas por este pequeno país.

    • Hélder Ramos on 24 de Junho de 2024 at 10:11
    • Responder

    As direções (assistidas) orientam muito mal os caminhos das comunidades que afirmam defender, porque (dizem!) há um projeto educativo; porque defendem um modelo assim e assado; porque estão muito empenhados na criação de condições blá, blá, blá…
    Tudo isto sintomático da escassa amplitude liderante. Um exemplo frequente: quando se entrevista um diretor no momento em que entra em funções e ouvi-lo 10 anos depois, percebendo que o registo persiste, é uma excelente nota daquela estabilidade egoísta que nada tem de pedagógico e até ético. Interessante, para reflexão da cómoda placidez com que olham para as necessidades diárias (em termos disciplinares, por exemplo, entre docentes) é verificar a qualidade das resolução tomadas por quem nunca sequer governou um quiosque, mas entroniza-se embrulhado em responsabilidades apaixonadas com o computador, por saber que do outro lado há um desconhecido que tem de saber que o sr. diretor está «profundamente preocupado com a vida do seu agrupamento», blá, blá, blá… Estará?

    • HajaJustiça on 24 de Junho de 2024 at 10:16
    • Responder

    Esplêndido. Obrigado. Porque não aparece isto nos noticiários?

      • Cláudia on 24 de Junho de 2024 at 10:24
      • Responder

      Porque não convém.

    • Profista on 24 de Junho de 2024 at 11:07
    • Responder

    As fugas podem ser maravilhosas, ouça-se a BWV 565.

  1. Por ser QZP, estou na minha 18ª escola.
    Andar de escola para escola fez-me perceber que a forma de funcionamento e a cultura de cada uma são muito diferentes.
    Desde a forma de fazer uma ata, até á forma como os professores são tratados, passando pelo modo como cada uma lida com a indisciplina.
    Pela minha experiência, o corpo dirigente da escola define a forma como os professores são tratados.
    Se a Direção desprezar os professores, isto vem contaminar tudo.
    Os professores são desprezados pelos funcionários, pelos pais e pelos alunos.
    Por isso defendo que a Direção deveria ser eleita pelos docentes e pelos restantes profissionais que nela trabalham, que são as pessoas que conhecem a realidade de cada comunidade escolar.
    Das escolas por onde passei, 3 eram particularmente más, onde o Diretor era um verdadeiro tirano.
    Numa dessas escolas, no concelho de Penafiel, aconteceu o seguinte:
    Tinha sido decretada greve pelos sindicatos tendo uma grande parte das escolas do País aderido em massa.
    Nessa escola. com mais de 130 professores. somente 4 fizeram greve, porque todos os outros tinham medo do Diretor.
    Esses 4 , todos do Porto, foram chamados para ir trabalhar no dia do Feriado do S. João.
    Uma vingança mesquinha.
    Passado pouco tempo após a greve, foi afixado um papel na sala dos professores, da associação dos pais, a agradecer o facto dos professores não terem feito greve naquela escola, (quando na maior parte do País as escolas foram encerradas).
    Achei aquilo muito ofensivo.
    Isto entre muitas situações, como o facto de as substituições serem feitas sempre pelos colegas do mesmo grupo, os professores de Português substituem os de Português, de Matemática os de Matemática e por aí fora.
    Sendo que chamam as pessoas para substituir da noite para o dia.
    Eu tinha marcado uma consulta médica, de difícil marcação para uma 5ª feira de manhã, que não tinha aulas na5ª feira de manhã.
    Na 4ª á noite, por volta das 9 e meia, telefonam-me a dizer que na 5ª feira de manhã tinha de fazer uma substituição. Tentei explicar a situação e responderam-me “desmarcas”. Mandei-os dar uma curva.
    Pelo que ouvi dizer, nessa escola ainda é assim.

  2. The first website to be indexed by a search engine was the Stanford Linear Accelerator Center (SLAC) in 1991.

    • Maria on 24 de Junho de 2024 at 11:35
    • Responder

    Que artigo tão verdadeiro!

  3. A realidade é profundamente triste e esgotante, mas prende-se com muita coisa estrutural que, desde 2005, foi sendo legislada:
    .modelo de gestão autocrático;
    .perda da redução da componente letiva a partir dos 40 anos;
    .projetos a mais;
    .intromissão das câmaras municipais, política local;
    .avaliação de desempenho subjetiva e interna;
    .excesso de poder de encarregados de educação;
    .excessiva intromissão politica na autonomia profissional do professor;
    .formação direcionada politicamente;
    .falsa inclusão, DL 55 e negócios de psicólogos para obtenção de relatórios que facilitem ainda mais a falta de trabalho dos alunos juntamente com falta de técnicos e escolas ou unidades especializadas;
    .falsa flexibilização, DL 55, promotor de aprisionamento e falta de criatividade pela imposição e imperativos de grelhas oficializadoras de procedimentos simples e naturais desde de há muito presentes nas práticas dos professores;
    .culpabilização total dos professores pelo insucesso dos alunos através de burocratizações pseudo objetivas pelos espartilhamentos em grelhas e obliteração de testes (MAIA);
    .escola depósito, falta de escola para pais;
    .uso excessivo de meios digitais de fraca qualidade e filtros duvidosos;
    .apagamento das artes e das humanidades do currículo;
    .criação de tempos propiciadores de inculcações cívicas discutíveis;
    .falta de tempo para o professor preparar devidamente as aulas;
    .excesso de atividades extra-curriculares de interesse do poder local e qualidade duvidosa.
    .

      • Bipartidarismo PS-PS2 on 24 de Junho de 2024 at 12:42
      • Responder

      Corretíssimo.

      De quem é a culpa ? Do bipartidarismo PS e PS2 … Se votaram nestas máfias dos interesses instalados não se podem queixar … Depois a culpa de todos os males é do Chega …

      1. Não sei se é do Chega (muitos dirigentes/militantes foram do PS2). Mas sei que esse partido quer privatizar toda a Escola Pública!
        https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/programa-do-chega-defende-privatizacao-de-hospitais-escolas-vias-de-comunicacao-e-meios-de-transporte

          • Mainada on 25 de Junho de 2024 at 11:50

          Assim, o Chega é mais liberal do que a IL!

  4. estórias

    • Inspeção e medicina no trabalho. on 24 de Junho de 2024 at 13:20
    • Responder

    Artigo muito bem escrito e bem pensado.
    Coloca o dedo nas feridas.
    Por que fogem os professores das escolas?
    Relações autoritárias e prepotentes por parte das direções: discriminação; ultrapassagem por colegas com menos graduação profissional na atribuição de turmas e horários; assédio laboral.
    Burnout. Depressões.
    Falta de saúde no local de trabalho.
    Escolas doentes que fazem adoecer os seus melhores profissionais.
    Mas a inspeção e a medicina no trabalho não existem para os profissionais de educação em Portugal!

    • Silva on 24 de Junho de 2024 at 14:01
    • Responder

    Há uma gritante falta de democracia nas ESCOLAS. Urge que os Diretores e as suas equipas sejam eleitas pelo pessoal docente e não docente das escolas, e que haja uma limitação efetiva de mandatos. Há que acabar com o autoritarismo e a prepotência dominante na maior parte das direções, na pessoa do Diretor.

    • Mainada on 24 de Junho de 2024 at 15:12
    • Responder

    Se as alterações nos concursos se fizeram para resolver o problema (problema?) dos QZP, então os QA, com todo o respeito devido, deveriam ter concorrido na segunda prioridade. Se as alterações se fizeram para gerar o caos, parabéns, está bem conseguido. Devia andar tudo para trás.

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