Oito falácias sobre a recuperação do tempo de serviço, Ana Godinho

Oito falácias sobre a recuperação do tempo de serviço

 

Professora há 33 anos, Ana Godinho diz que os professores “não estão a pedir os muitos milhares de euros que perderam nos 18 últimos anos da sua carreira, em que foram posicionados em escalões abaixo do que está consagrado no Estatuto da Carreira Docente”. E lembra que no caso das carreiras gerais da Função Pública ou dos enfermeiros foi devolvido todo o tempo de serviço congelado

 

Sou professora há trinta e três anos e sim, considero justa e legítima a recuperação integral do tempo de serviço dos professores. Existe uma lei e um Estatuto da Carreira Docente, que não está a ser respeitado para milhares de docentes – toda uma geração dos 40 aos 60 anos – que contribuíram imenso, com o seu esforço e dedicação, para a qualidade do ensino público no país e contribuíram também, com cortes no salário, cortes nos subsídios de férias e de Natal e congelamento das carreiras durantes 9 anos e 4 meses (desde 2005, antes da chegada da Troika) para o equilíbrio das contas públicas. E agora, estou cansada de ouvir no espaço público, em jornais e televisões, membros do Governo a deturpar os factos por interesse político e comentadores de tudo um pouco que dão as suas opiniões sobre assuntos sérios sem se preocuparem em inteirar-se da veracidade do que afirmam ou limitando-se a seguir a sua agenda política. Por isso, venho esclarecer alguns factos e denunciar algumas das falácias mais frequentes que se ouvem a respeito deste assunto.

Primeira falácia: os professores perderam 6 anos, 6 meses e 23 dias do total do tempo de serviço prestado. Os professores não perderam só este tempo de serviço. Todos os professores que estavam integrados na carreira em 2005, antes do primeiro congelamento, tiveram 9 anos, 4 meses e 2 dias de tempo de serviço congelado, de que o Governo em 2018 devolveu 30% – 2 anos, 9 meses e 18 dias. Por isso faltam os 6 anos, 6 meses e 23 dias de tempo que permanece congelado. Mas, a esse tempo congelado na sua carreira, acrescem 2 a 4 anos que grande parte dos professores perdeu na transição das carreiras em 2007 ou 2008. É importante esclarecer que grande parte dos professores tem cerca de 10 anos de tempo de serviço não contabilizado, e não 6, e a esse tempo perdido ainda se somam os 1 a 4 anos que muitos perderam nas listas de acesso ao 5º e 7º escalões, desde 2018. É importante dizer também que esse tempo perdido na transição da carreira está a ser devolvido nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira.

Segunda falácia: este é um assunto do passado e não vale a pena estar sempre a voltar a ele. Não, os professores não estão a pedir os muitos milhares de euros que perderam nos 18 últimos anos da sua carreira, em que foram posicionados em escalões abaixo do que está consagrado no Estatuto da Carreira Docente. Se eu fizesse a conta, ver-se-ia quanto milhares de euros do que devia ser o meu salário o Governo arrecadou nos últimos 18 anos. E fê-lo à grande maioria dos professores. Talvez esses números esclarecessem quem afirma que os professores perderam pouco e os funcionários do setor privado perderam mais. Os professores estão apenas a pedir que o Governo não continue a ficar com parte do seu legítimo ordenado agora que já não estamos em crise, mas com excedente orçamental. Porque é que um professor, além dos seus impostos, ainda tem de dar todos os meses cerca de 20% do seu salário ao Estado, quando isso não acontece a mais nenhum trabalhador? Não bastaram os 18 anos de sacrifícios? E ao receber salários reduzidos artificialmente, os professores vão chegar à reforma com pensões muitíssimo menores do que o que está de acordo com a profissão que exerceram ao longo da vida.

Terceira falácia: para devolver o tempo de serviço aos professores, o Governo tem de o devolver também às outras carreiras da função pública, pois não pode abrir exceções para os professores. Eis o argumento mais usado pelo Governo e que muitos comentadores repetem sem verificarem a sua veracidade. Uma vez que que os funcionários do regime geral da função pública receberam todo o tempo de serviço congelado em 2018, e foi noticiada, no final de 2022, a devolução de tempo de serviço aos enfermeiros, com retroativos ao início do ano, eu gostava muito de saber a que carreiras se refere o Senhor Primeiro-Ministro quando usa este argumento. Porque é que se pôde abrir exceções para os funcionários do regime geral e para os enfermeiros e não se pode abrir para os professores? A verdadeira exceção nesta equação não são os professores?

Quarta falácia: todos os trabalhadores da função pública receberam 70% do tempo do módulo de progressão na sua carreira, por isso todos receberam a mesma proporção de tempo de serviço. Este argumento contraria o anterior. Afinal, há carreiras que já recuperaram o tempo de serviço congelado. Segundo o Governo, aplicou-se a todas as carreiras a mesma proporção de devolução do tempo de serviço congelado – 70% do tempo que é necessário para progredir um escalão ou módulo da carreira. Ora este número de 70% não é um número inocente, é o número que permite devolver a totalidade do tempo congelado aos trabalhadores do regime geral e enfermeiros, que tinham 7 anos congelados (e progridem com 10 pontos, sendo o mínimo a atribuição de 1 ponto em cada ano), e devolver aos professores, que tiveram 9 anos e 4 meses de tempo congelado, apenas 30% desse tempo – 2 anos, 9 meses e 18 dias (que corresponde a 70% dos 4 anos de cada escalão). Foi pena que, quando se lembraram de congelar as carreiras, não tenham aplicado a mesma proporcionalidade, congelando apenas 70% do módulo para progressão da carreira dos professores e não 230%, como aconteceu. Por outras palavras, uns tiveram 70% do tempo do módulo de progressão congelado e receberam esses 70%, outros tiveram 230% do tempo de escalão congelado e recebem os mesmos 70%. Penso que a isto se chama brincar com os números.

Quinta falácia: a diferença na contagem do tempo de serviço dos professores das regiões autónomas do Açores e da Madeira e de Portugal Continental justifica-se pelo motivo da insularidade. Ninguém contesta que possa haver um regime de exceção para os professores das regiões autónomas dos Açores e da Madeira. Acontece que o Estatuto da Carreira Docente é exatamente igual no Continente e nas regiões autónomas. É o mesmo. Simplesmente, nas regiões autónomas, por razões políticas, os governantes optaram por cumprir a lei, no Continente, por razões políticas, o Governo optou por não cumprir a lei e encontrar para os professores um regime de exceção. É que não existe uma exceção para os professores dos Açores e da Madeira, existe uma exceção para os professores do Continente. Aconteceria uma situação semelhante se, para atrair médicos ou magistrados para trabalharem em regiões do país onde faltam esses profissionais, se mantivesse o salário dos profissionais deslocados e se cortasse o de todos os outros.

Sexta falácia: o setor privado perdeu mais do que os professores. Já referi que não está em causa o que cada um perdeu, mas o que continuamos a perder. Em todo o caso, quem faz estas afirmações devia apresentar números porque creio que os trabalhadores do setor privado não tiveram tantos cortes de subsídios de férias e de Natal e o corte nos salários foi igual para todos. Apresentar como argumento para manter o corte dos salários dos professores em 2023 o desemprego no setor privado de 2015 parece-me no mínimo bizarro. Se não perdi o meu emprego, foi porque continuaram a precisar do meu trabalho e foram os que não perderam o seu emprego que mantiveram o país a funcionar e contribuíram, com os seus impostos e cortes de salários, para ajudar quem ficou no desemprego. De resto, quem utiliza esta argumento omite o facto de o salário médio em Portugal ter subido de 900 para cerca de 1500 euros em menos de 10 anos, de os aumentos de salários na função pública terem sido sempre ou nulos ou abaixo da média dos trabalhadores portugueses e de atualmente termos o maior número de sempre de pessoas empregadas.

Sétima falácia: as medidas que o Governo apresenta no diploma vetado pelo Presidente da República são suficientes pois constituem um fator de aceleração para cerca de 60 mil professores. Na verdade, o que o diploma propõe é a devolução dos 1 a 4 anos que os professores que já têm 10 anos de tempo de serviço não contabilizado perderam em listas de espera para aceder ao 5º e 7º escalões. A medida só peca por tardia, e não vai devolver o que todos esses professores perderam a mais, e também não recupera um dia do tempo de serviço congelado ou subtraído na transição das carreiras destes docentes. A quem tem 8 a 10 anos não contabilizados, não perdeu tempo de serviço em listas e chegou ao 7º, 8º ou 9º escalões, é oferecido 1 ano para «acelerar a progressão da carreira». Se a devolução de um ano se considera uma aceleração para quem tem 10 anos perdidos, é caso para questionar se o veículo que tem este poder de aceleração foi encontrado na sucata. Pode até ser verdade que a medida abranja 60 mil professores, a questão é para que nos serve um ano de serviço. Se o Governo oferecesse seis meses de tempo de serviço a cada professor, podia afirmar que as suas medidas abrangiam 130 mil.

Oitava falácia: os professores progridem de escalão automaticamente e a sua avaliação é fictícia. Quem faz esta afirmação podia dar-se ao trabalho de ler a legislação sobre a avaliação de professores e as condições para progredir na carreira. Todos os anos os professores têm de entregar um relatório anual com evidências sobre todo o trabalho desenvolvido, em parâmetros como Atividades Letivas, Resultados Obtidos, Contributo para o Projeto Educativo de Escola e Formação. A avaliação acontece ao fim de 4 anos e é atribuída com base em parâmetros que vão muito para além das competências dos professores consagradas no Estatuto da Carreira. No que diz respeito à formação, é obrigatório, para progredir, frequentar 50 horas de formação, que ocorre fora do horário dos professores, normalmente à noite ou ao sábado. Apesar do financiamento dos Centros de Formação – e seria interessante saber que parcela do orçamento para a Educação é atribuída a essa e outras entidades cuja importância podemos questionar -, muitos professores, para conseguirem formação de qualidade ou formação na sua área – e 50% da avaliação tem de ser na sua área de ensino – têm de pagar a formação. Já paguei várias, de 30, 55 e 130 euros.

Para além de estarem presentes nas sessões de formação, os professores têm de fazer trabalhos entre as sessões, um trabalho final e um relatório, o que duplica as horas despendidas na formação. Obtém-se um certificado – ou compra-se um certificado, porque até para emitir o certificado nos pedem dinheiro – de 25 horas e trabalhou-se 50. Depois, em alguns escalões é obrigatório ter aulas assistidas e no 4º e 6º escalões, por muito bem que se tenha trabalhado e até se tenha obtido avaliação de excelente, as cotas não chegam e os professores vão, daí a uns meses, integrar listas que têm outras cotas para a progressão, que dizem respeito a janeiro de cada ano, mas saem só no final do ano. O ano passado saíram em outubro e este ano ainda nem foram fixadas as cotas de «saída das listas». Para além dos anos que já perderam, os professores ficam o ano inteiro sem saber se foi em janeiro desse ano que progrediram ou não, o que é bem revelador do respeito com que são tratados.

Que o Governo queira manter o corte no salário dos professores, contabilizando-lhes menos 10 anos de tempo de serviço, para usar o dinheiro a seu bel-prazer, ainda se compreende. Que comentadores no espaço mediático se limitem a propagar lugares-comuns originados por preconceitos e revelem um grande desconhecimento sobre o assunto que comentam, é que é lamentável.

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8 comentários

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    • N.Ribeiro on 4 de Agosto de 2023 at 11:14
    • Responder

    Excelente.

    • Luís Miguel Cravo on 4 de Agosto de 2023 at 11:52
    • Responder

    Os “comentadores mediáticos” são uns imbecis que nunca foram professores, odeiam professores e vêem-nos como um inimigo eterno de quem, agora, já podem vingar – se, destilando todo o fel malcheiroso que sai daquelas bocas de meninos da mãe…. a título de exemplo, aquela figura triste e frustrada do Miguel Sousa Tavares que sabe ZERO sobre educação em Portugal, o pobre.

    • professora on 4 de Agosto de 2023 at 11:59
    • Responder

    Excelente!
    Mais claro é impossível.
    Espero que os ignorantes e “mentaderos”do regime leiam e aprendam.

    • Natália Marques on 4 de Agosto de 2023 at 13:38
    • Responder

    Muito esclarecedor. Há ppr aí gentalha que precisava de um ano na profissão para depois opinar…Os comentadorzecos que ainda recebem para emitir um “achometro” sobre um assunto, que à partida, aparece inquinado…também era bem capaz de emitir opiniões similares sobre todos os assuntos, mas a minha consciência e o meu respeito pelos demais, impede-me de entrar nesse barco à deriva!

    • Tenhodito on 4 de Agosto de 2023 at 14:27
    • Responder

    Muito bom artigo. Bem explicado.
    Restará agora explicar o que se vai passar com o diploma que está para ser aprovado e que vai causar uma diferenciação enorme entre os próprios professores, apenas por razões absurdas e injustas, com a capa falsa de recuperação de tempo de serviço.

    O diploma abjeto que está para ser aprovado, foi recusado pelo PR e dois dias depois parece quase aceite pelo mesmo PR, após o governo ter colocado uma única palavra que nada de novo vem a acrescentar vai provocar o seguinte:

    – Quem estava na carreira docente antes de 29/08/2005 (data do início do 1.º congelamento da carreira docente, feito por Sócrates), vai poder passar ao 5.º e ao 7.º escalões, isentando das vagas absurdas que foram criadas para o efeito, ainda no tempo de Maria de Lurdes Rodrigues / Sócrates;

    – Quem estrou na carreira docente após esta data, e, por isso, não apanhou todo o tempo de congelamento (nem que seja apenas por dois ou três dias), tem de se sujeitar às vagas aos 5.º e 7.º escalões, que serão, a partir de agora, metade do que eram antes, quando antes já eram apenas de 1 ou 2 por agrupamento ;

    – Quem esteve mais de 30 dias doente, devidamente comprovados e, por isso, justificados por atestado médico, não poderá usufruir de isenção de vagas aos 5.º e 7.º escalões, mesmo tendo estado na carreira antes de 29/08/2005.

    Isto significa que haverá professores de 1.ª e de 2.ª. Os de 2.ª terão de dar o litro e prejudicar as suas vidas para poderem ter a hipótese muito remota de transitar de escalões (lembro que apenas haverá uma vaga por agrupamento).

    Isto significa que, 99% dos professores que entraram na carreira a partir de 29/08/2005 ficarão congelados efetivamente, no 4.º escalão, até ao fim das suas carreiras, por mais anos que trabalhem. Se só há 1 vaga por agrupamento, está claro que a maior parte nunca chegará ao 5.º escalão, numa carreira de 10 escalões.

    Esta passará, assim, a ser uma carreira que, estando já quase impossível para poder chegar ao fim de carreira, agora será absolutamente impossível de chegar a pouco mais de metade (na melhor das hipóteses).

    A geração de professores que é “menos velha” (já que a média de idade já anda nos 51 anos), será a mais prejudicada. Quem tem agora 40 e poucos anos, não passará do 4.º escalão, a não ser casos muito específicos, e não propriamente por competência, já que cabe à Comissão de Avaliação de cada agrupamento, dirigida pelo Diretor, escolher quem pode passar ao 5.º escalão.

    Teremos assim, uma geração ou duas de professores, altamente especializados e formados (licenciaturas, especializações, mestrados e até doutoramentos), que ganhará pouco mais de 1100 euros líquidos para o resto da vida, e terá uma reforma que, a níveis atuais, será daqui a 20 anos correspondente ao salário mínimo nacional.

    É este o futuro para estes professores. Por isso, já sabem jovens, abdiquem das vossas vidas, abdiquem das vossas famílias, abdiquem do vosso futuro, para virem para uma profissão onde serão mal pagos, serão mal tratados por todos, ridicularizados por comentadores ignorantes e estúpidos, por alguma comunicação social ao serviço de interesses partidários, e, principalmente, por governos antidemocráticos, aldrabões e velhacos.

    • Maria Faria on 4 de Agosto de 2023 at 14:52
    • Responder

    Esclarecedor!!! Melhor artigo que já li sibre avaliação.
    Obrigada pela partilha!

  1. Reparem que o António (burgesso) ainda nada disse (mas sempre que escreve nada diz)…

    • A realidade on 4 de Agosto de 2023 at 18:04
    • Responder

    Este governo, continuação da depravação ética dos governos anteriores, começada pelo governo de Sócrates e de Maria de Lurdes Rodrigues, consegue despedaçar a esperança dos professores, a esperança de todos os que com abnegação e entrega, entraram na carreira durante o congelamento.
    A esses este governo tira toda a esperança, atirando o seu futuro para um congelamento eterno no 4.º escalão, e condenando-os a uma reforma de miséria e degradação.

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