Estamos sobrecarregados de solicitações digitais, tornamo-nos dependentes dos nossos smartphones e temos cada vez mais dificuldade em concentrar-nos na tarefa que estamos a realizar (ler, falar, descansar) sem sermos interrompidos por sinais digitais, aos quais respondemos a correr. O nosso grau de atenção está francamente a diminuir.
Quanto mais “inteligentes” se tornam as aplicações, mais invasivas são das nossas vidas e substituem o nosso pensamento. Já nos lembram de todos os nossos compromissos e obrigações, escolhem os nossos restaurantes, ordenam-nos as informações de que dispomos, selecionam os anúncios que nos são enviados, determinam as rotas e caminhos que devemos seguir, propõem respostas automáticas a algumas das nossas perguntas verbais e aos e-mails que nos são enviados, domesticam-nos os filhos a partir do jardim de infância, etc. Mais um esforço e, realmente, acabarão a pensar por nós.
Uma dependência aparece quando se deixa de ter controlo sobre a necessidade de fazer uma coisa. Muita gente — eu próprio incluído — olha para o telemóvel mesmo quando está ocupado a fazer outras coisas com outras pessoas.
Vem esta questão, que já exagerei na introdução, a propósito de um livro recente que li (edição original em França de 2021), sobre os perigos dos ecrãs para os nossos filhos. Polémico logo no título – A Fábrica de Cretinos Digitais (2021), que venceu o prémio para melhor ensaio em França, da autoria de Michel Desmurget (neurocientista).
Trata-se de uma obra que tem tanto de pertinente como inquietante, traçando um cenário doloroso sobre os efeitos que esse consumo em excesso está a ter nos cérebros dos nossos filhos.
E atenção que a obra não pode ser considerada como um libelo contra o mundo digital – não é tecnofóbica, o que seria uma idiotice no mundo que vivemos diabolizar as tecnologias e o seu uso. Não, trata-se de uma obra séria, cuidada nos dados e referências que publica e muito oportuna. E apesar de colocar o foco, muito interessante, na questão da exposição” digital” de crianças, a questão de fundo que levanta é útil, mesmo para adultos.
Desde que irrompeu o “digital e o mundo dos ecrãs” nas nossa vidas – fenómeno relativamente recente à escala das nossas vidas – relembro com frequência que quando tinha a idade dos nossos alunos atuais ninguém tinha computador em casa, com os telemóveis, tablets, consolas de jogos a serem realidade bem distantes ou em “sonhos” de autores de ficção científica ou em filmes – a este propósito não resisto em mencionar o Blade Runner (1982) de Ridley Scott.
Mas adiante, de que perigos falamos?
Quanto ao mundo adulto pouco mais há a dizer, atente-se na introdução deste artigo. Apesar da relação com estas tecnologias ser algo recente, todos (adultos, jovens adultos) vão conhecendo histórias dos efeitos nefastos de uma ligação “desregulada e excessiva” com este mundo. São as horas que se “queimam” ao sabor dos cliques, páginas que se saltam de umas para as outras, jogos online, maratonas a ver séries – já não temos a calma e a sobriedade de esperar pelo episódio da semana, onde a realidade televisiva ou a internet já não satisfazem, por lentas. O entretenimento sem interrupções que temos disponíveis (e a baixo custo) – basta pensar nas plataformas digitais e na quantidade enorme de conteúdos que temos disponíveis a qualquer hora do dia, aparentemente, não nos tem feito mais felizes, tal é a sensação de vazio que deixa em muitas pessoas. E não é por falta de entretinimento, é mesmo por excesso.
Retornando ao autor e ao que partilha de preocupante, é o que diz sobre os efeitos desta exposição desregulada – diz-se assim, porque os adultos, pais e famílias, não estão a regular de forma conveniente, ou não estão atentos ao problema, do tempo em excesso que as novas gerações estão a interagir com smartphones, tablets, computadores é elevadíssimo, e em idades que surpreendem.
Atentem nos números que, insisto, são o resultado de estudo a amostras relevantes de crianças da europa ocidental.
Aos 2 anos, as crianças consagram todos os dias quase três horas a ecrãs. Entre os 8 e os 12 anos, esse tempo aumenta para cerca de quatro horas e quarenta e cinco minutos. Entre os 13 e os 18, a exposição é em média de seis horas e quarenta e cinco minutos diários. Em termos anuais, são cerca de mil horas para um aluno do 1.º ciclo do ensino básico (quase o mesmo número de horas de um ano escolar) e 1700 para um do 2.º ciclo. Já para um aluno do 3.º ciclo e do ensino secundário, falamos de 2400 horas anuais, o equivalente a um ano e meio de trabalho a tempo inteiro.
E desta observação retira o autor, para reflexão, as seguintes preocupantes conclusões. Ao contrário do que se pensava, a profusão de ecrãs a que os nossos filhos estão expostos em idades tão precoces estão longe de lhes melhorar as aptidões. Na verdade, verifica-se precisamente o oposto: acarreta consequências pesadas ao nível da saúde (obesidade, desenvolvimento de doenças cardiovasculares e diminuição da esperança de vida), em termos de comportamento (agressividade, depressão, ansiedade) e no campo das capacidades intelectuais (linguagem, concentração e memorização).
Vão-se identificando problemas – usa-se mesmo a expressão hecatombe morfológica, para descrever os problemas musculares, mental e social a afetar a cultura do corpo, sentado inúmeras horas, valorizando a ponta dos dedos e a fadiga visual, com consequências na enorme taxa de sedentarismo, inatividade física, criando cada vez mais analfabetos motores – os professores de educação física podem falar muito sobre isto, e lutam diariamente para contrariar o fenómeno, que tem consequências evidentes na saúde física.
Tudo isto afeta gravemente o rendimento escolar dos jovens e o seu desenvolvimento.
E conclui o autor que os nativos digitais – expressão criada no início do século XXI para definir aqueles que nasceram e cresceram numa cultura digital, são os primeiros filhos a terem um QI inferior ao dos pais e que após milhares de anos de evolução, o ser humano está agora a regredir em termos cognitivos e de capacidades intelectuais, por culpa da exposição excessiva a ecrãs.
O mundo digital está a transformar tudo à nossa volta e, se não estivermos atentos, também pode transformar cada um de nós a partir de dentro, seja adulto ou criança. É só deixarmos que o uso das tecnologias se transforme num exagero pouco saudável, e num (mau) hábito que nos preencha.
Da experiência de investigação – e observação no mundo escolar, tem sido possível verificar a existência de alguns casos de crianças e jovens que são exímios jogadores frente aos ecrãs, mas que não sabem brincar em atividades livres com os amigos. Esta relação entre cultura digital e cultura motora, deveria merecer mais reflexão no contexto familiar, educativo e comunitário. É fundamental para a saúde pública da sociedade contemporânea a consciência de um equilíbrio na utilização lúdica destes artefactos digitais e a promoção de estilos de vida ativa, como o caminhar, correr, saltar, nadar, brincar ao ar livre, jogar à bola, andar de bicicleta e skate, sujar-se, perseguir, ser perseguido e lutar, subir às árvores, descobrir através das experiências com o envolvimento natural e construído, cores, cheiros, contrastes, desafios, aventuras, etc.
Parece óbvio que as crianças e os jovens devem aprender as habilidades fundamentais e aproveitar as magníficas potencialidades que o mundo hoje oferece no acesso à informação e ao conhecimento.
Mas enterrar a cabeça na areia e não estar atento aos “problemas” que vão sendo identificados seria também uma atitude incompreensível e perigosa. Os pais e as famílias têm de estar atentos à forma (e tempo) que se colocam esses dispositivos
nas mãos de crianças e jovens sem qualquer controlo. Não sermos adultos distraídos digitalmente, por conveniência de gestão de tempo pessoal, ou falta dele. No fundo, uma educação mais atenta e saudável dos filhos no uso deste arsenal de ecrãs disponíveis.
Um contributo seria, por exemplo revalorizar a leitura (onde a escola muito se empenha), de literatura e de poesia, promover o contato com a natureza, comportamentos que possuem maravilhosas propriedades terapêuticas.
As palavras ajudam-nos a viver melhor, de um modo mais sereno.
Paulo Barata
1 comentário
Excelente texto. Muito bem escrito. De leitura agradável. Cativante.
Tendo o cuidado de dizer que seria patético diabolizar as tecnologias faz uma reflexão muito sensata sobre a excessiva exposição das crianças ao digital com consequências para a sua saúde e socialização.
Igualmente para a saúde dos adultos, que somos nós.
Termina de uma maneira enternecedora sugerindo que as crianças leiam poesia e que contactem com a natureza. Obrigada pelo seu texto, Paulo. Revela ser uma pessoa sensível e sensata.
Lamentamos é que os pais façam orelhas moucas aos conselhos dos professores e as levem ao fim de semana a passear nos supermercados e centros comerciais para consumir bugigangas em vez de um livro.