6 de Agosto, estamos na praia, estamos em casa, estamos à mesa, viemos da praia há tanto esperada e ansiada e está tudo bem. Pelo menos para nós está tudo bem, ainda agora deitados ao sol e em tudo distantes do mesmo dia de chuva em Londres, quem sabe de esperança, o dia no qual Asim, rapaz de 15 anos, entrou pelo Civic Centre (equivalente à Câmara Municipal) de Croydon adentro sem nada nem ninguém, apenas as roupas do corpo e este pedido de ajuda. Não sabemos como nem por que meios Asim logrou atingir território britânico, apenas que é Afegão e se Afegão é terá percorrido pelo menos 7500 km entre países como o Irão, Iraque, o mar, o terrível mar, e depois a Turquia(?), a Europa(?), não sabemos ao certo, para aqui chegar a este porto seguro, ou assim crê, ou assim quer crer. Assim como não sabemos durante quanto tempo, apenas que Asim tem 15 anos, fala pashto mas não fala inglês, não tem documentos e não sabe a data de nascimento. E como Asim não tem documentos, nasceu a 1 de Janeiro tal como tantos que aqui chegam nasceram a 1 de Janeiro, ano novo, vida nova e com 15 anos e contas feitas, Asim nasceu a 1 de Janeiro de 2006. A minha mulher também teve 3 alunas, todas irmãs e nascidas a 1 de Janeiro, a mais nova no 7° ano e as mais velhas no 9° e 10° e documentos nem vê-los. Por conseguinte, já não estamos na praia, saímos da praia e estamos em contacto com os Serviços Sociais, a polícia, a família de acolhimento já identificada e a escola mais os preparativos para Setembro. No dia 6 de Agosto à noite, Asim pôde dormir numa cama e parece que este porto é mesmo seguro. Apesar da chuva, mas a chuva é uma bênção, já o disse, e a chuva não dispara. 28 de Julho e Ridwan entrou pelo posto da polícia de Chelsea com estas palavras na boca: “I am new”, “eu sou novo” se traduzirmos à letra mas subentendido por “recém-chegado”. Em conversa com a polícia e no seu fraco inglês, Ridwan explicou como o seu pai lhe tinha dito a sua data de nascimento e o norte do Iraque como lugar de proveniência. Nada mais. Ridwan fala curdo e fugiu da guerra, da perseguição, da morte certa, é uma criança e está à nossa frente. Tudo o que precede a sua chegada é impossível conceber, imaginar, experiênciar, nem deve, não devia, mas é e Ridwan é o filho desta viagem, esfomeado, esfarrapado, perdido mas encontrado e à procura da paz e Ridwan ainda vai precisar de tempo até lá chegar, à paz. Ridwan nasceu em Novembro de 2005 e a 28 de Julho a caminho do aeroporto este que vos escreve ao telefone com a polícia e os serviços sociais, a família de acolhimento e a escola. Uns dias antes, enquanto fazíamos as malas depois do mais longo ano de trabalho de todas as nossas vidas chegou-nos notícia de Haseeb e respectiva família, refugiados recém-chegados com direito a asilo e apoiados pela Cruz Vermelha. Pelo meio, o caso de Hashir, também afegão e descrito como “polite, friendly and well behaved” como se fosse nossa preocupação se uma criança que aqui chega por si só ter a obrigação de ser bem-comportada ou carinhosa quando nós é que temos a obrigação, para não dizer o dever, de pedir desculpa a quem teve de deixar tudo para trás sem a certeza de algum dia regressar a casa ou a vã esperança de voltar a ver os braços de uma mãe ou pai, neste momento tão longínquos como longínquas são as mais distantes galáxias. E os casos de Faisal, Bilal, Sameer, entre tantos outros que, com a chegada do Verão e das águas mais calmas aproveitam a benesse para se lançarem ao mar na travessia do Canal da Mancha em números cada vez maiores. Porque o mundo não dorme e a fome, a morte e o sofrimento também não. Independentemente das supostas férias e do esperado estio. Independentemente do nosso descanso que não o pode ser mesmo se finalmente de volta a casa. E porque nós estamos de volta a casa enquanto outros fogem dela, não só não paramos como não queremos parar. A escola, a nossa escola, é um porto seguro e o seu papel essencial na garantia de uma família, um tecto, educação e futuro para quem arriscou muito mais que a vida para aqui chegar. É o nosso dever, é a nossa obrigação, é a nossa missão.