A história do pensamento humano e dos acontecimentos que provoca está cheia de exemplos de multidões vítimas de políticas desumanas e de políticos sem alma. Quase sempre, os algozes odeiam as vítimas. Quase sempre, as vítimas não agem com vigor suficiente para fazer retroceder a injustiça. E soçobram por medo e por acomodação.
A avaliação do desempenho dos professores, tal como hoje é promovida, é um cancro pernicioso na vida das escolas. É uma saga segregacionista, que beneficia uns e esmaga outros. Tudo sob o olhar colaboracionista de chefes, cuja consciência não passa de um balde de despejo do pior que a sociedade tem. São eles que decidem os que progridem e os que apodrecem, vazios, esgotados, no corredor da morte em que se transformou a carreira docente. Tudo sob o anonimato e a opacidade que os normativos administrativos promovem.
Não há a mínima evidência de que este modelo de avaliação tenha contribuído para a melhoria da qualidade do ensino. Depois de vários anos de aplicação, afirmou-se como gerador de arbitrariedades e repressão, ao gosto da gestão educacional prevalecente. Não é por acaso que é individual, quando poderia fazer mais sentido avaliar equipas. O seu propósito é que cada professor acabe por ficar sozinho no seio de uma classe donde a solidariedade foi varrida.
Cerca de 4400 professores estão há anos (alguns há mais de uma década) impedidos de progredir para os 5º e 7º escalões da carreira, apesar de para tal reunirem todos os requisitos legais (tempo de serviço, formação complementar exigida, classificação de desempenho de Bom, Muito Bom ou Excelente e, no caso dos que se encontram no 4º escalão, sujeição a uma avaliação externa, por via de observação de aulas). A vilania e a arbitrariedade de um sistema de quotas, idealizado por insanos, determina que um docente classificado com a menção de Excelente possa ver essa classificação administrativamente diminuída, ficando retido no escalão em que está, porque a quota disponível no seu agrupamento assim o determina, enquanto outro, de outro agrupamento, ainda que com classificação inferior, lhe passa à frente e muda de escalão, no ambiente de roleta russa em que a coisa se transformou. Não fora esta discriminação suficiente, acresce que, na Madeira e nos Açores, e bem, todos os que reúnem as condições mínimas exigidas mudam automaticamente de escalão, como se de outro país se tratasse.
Quando torna públicas as listas ordenadas dos candidatos à mudança de escalões, o Ministério da Educação subtrai, convenientemente, parte da informação que permitiria detectar injustiças e favorecimentos. Naturalmente que o faz a coberto da cínica invocação da protecção de dados individuais.
Recorde-se que a ordenação dos candidatos deve submeter-se ao tempo de serviço no escalão, contabilizado em dias; havendo empate, prevalece a classificação do desempenho imediatamente anterior; persistindo ainda o empate, é preferido o candidato mais velho. Ora sendo ocultados os dados que permitem escrutinar o respeito destes indicadores, subsiste a dúvida, legitimada, em cúmulo, pela circunstância da Comissão de Acesso a Documentos Administrativos e a Provedoria de Justiça terem expressado parecer fundamentado no sentido de que tais elementos devem ser públicos.
Os parâmetros e os descritores vigentes, sistema fora, quando existem, são uma manta de retalhos, recorrentemente sem coerência, com que as respectivas SADD coexistem, sem sobressalto ético ou deontológico.
Se este modelo de avaliação do desempenho é perverso, aberto ao favoritismo casuístico, se contribui para piorar o sistema de ensino, que não para o fortalecer, se desmotiva e revolta, porque não agem os professores, de modo vigoroso e eficaz? Porque estão cada vez mais apáticos e politicamente passivos. Porque, cada vez mais, ganham subserviência e perdem dignidade.
Infelizmente, esta situação soma-se a um ambiente geral de desrespeito pela Constituição e pelos direitos fundamentais, no quadro das liberdades e garantias dos cidadãos, promovido por aqueles que institucionalmente maior dever têm de os proteger. Nunca como agora, em 47 anos de democracia, vi tamanha ligeireza governativa para favorecer formas de discriminação, confundindo coacção com protecção, ao arrepio do que consigna o art.º 26º da Constituição da República Portuguesa.
In “Público” de 4.8.21
5 comentários
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“Nunca como agora, em 47 anos de democracia, vi tamanha ligeireza governativa (…) ao arrepio (…) da Constituição da República Portuguesa.
Nem eu.
Ligeireza que vai muito além da questão da proteção de dados.
Diria, uma arrepiante ligeireza governativa que está a dar cabo da nossa democracia.
A ligeireza geringonça, lol.
E o que significa agir? Recorrer? Todo o processo está inquinado na origem e foi reforçado com todos os precedentes que já criou num emaranhado sem volta. Não há como usar o que existe de forma a funcionar bem.
O prior é que mesmo que fosse possível substituir este por outra coisa, seriam os mesmos de sempre a assinar e a aprová-lo. Pior ainda, sabemos que conseguem sempre pensar numa alternativa mais nociva e perniciosa.
Um país complicado, com gente muito complicada, sobretudo, governantes.Não vou falar da apatia e da subserviência que sempre existiram.Nem interessa falar mal da classe. Nenhum sapateiro, disse bem de outro sapateiro.
Aos nossos governantes, falta-lhes, se calhar quase desde sempre, um sentido prático das coisas.
Por exemplo e sobre este tema, por que há tanta diferença entre os escalões ? Haver diferenças sim, mas em justos limites.Se assim fosse, o dinheiro, que afinal é o que conta, seria melhor repartido e não haveria tanta ganância, tanta falta de transparência, para não dizer vigarice.
Assim, anda-se às “ cabeçadas “, uns contra os outros e dá-se uma imagem triste e sem dignidade a quem vai assistindo .Só serve para muitos, aproveitarem -se desta pouca vergonha e espezinharem esta classe, ainda mais,outrora muito valorizada e para corroborar o que venho dizendo, não propriamente, valorizada pelo dinheiro.
Uma vez mais, serão estes e outros governantes, salvo raras exceções, que sofrem de falta de pragmatismo, para nosso infortúnio.
Injustiças sempre houve. Mas as que esta ADD produziu são surrealistas, malévolas, inadmissíveis numa democracia. Não esqueçamos as que ocorreram na divisão da carreira em 2007. Os que estavam no topo da carreira e já ganhavam mais recuaram um escalão, os que estavam no oitavo regrediram para o 6º e os professores do 7º escalão recuaram para o 4º escalão, estando, agora, alguns a ser ultrapassados pelos colegas justamente reposicionados quando ingressam nos lugares de quadro. Os que já estavam nos quadros em 2007, foram esquecidos e perderam 3 escalões para além do tempo de congelamento que foi surripiado. E como se isso não bastasse, perdem, ainda, parte do tempo recuperado, enquanto aguardam nas listas de acesso ao atual 7º escalão, alguns com avaliação externa e interna superior a 9 (Excelente) e que, devido às quotas, foi convertida em Bom. Alguns destes professores, por decisões que os ultrapassaram (e não só por causa da pandemia), não foram avaliados de acordo com a legislação, isto é, no ano anterior ao da mudança de escalão, em 2019. Não foi tida em conta a recuperação do tempo de serviço congelado. Assim, estes professores foram avaliados no final de 2020, num universo que não era o seu, em condições piores, sujeitando-se a quotas quiçá mais desfavoráveis. Alguns apresentaram reclamação e recurso, mas mantiveram a classificação “ por esta ser inferior ao do último classificado nas quotas”.
“ por esta ser inferior à do último classificado nas quotas”.