As 33 sombras da minha docência

A turma é grande. Na verdade, é mesmo muito grande. Resultou de várias sobras e expurgas que condensaram aqui, no 7º G. 33 alunos, escolhidos com primor, qual deles o mais desmotivado, irrequieto, insuportável, inconformado…? A coisa começou torta logo na primeira aula, quando, asneira minha, permiti que escolhessem os lugares. Confusão geral, pois a Rita sempre se sentou com a Amélia e não quer ficar ao pé do Rui que gosta de ficar na carteira mais ao fundo para se comportar melhor (???); por outro lado, o Fábio não quer ficar com o irmão João, pois já dormem no mesmo quarto e comem na mesma casa, quer, isso, sim, ficar sozinho numa carteira que fique à frente, mas ao lado do Luís, que detesta ficar nos lugares da frente, ainda se fosse atrás do André, mas a Cláudia enerva-se e começa a dizer que não sai dali, esse lugar é dela, desde o quinto ano e que não se senta com o Carlos, porque é rapaz, quer é ficar com a Catarina, mas a Catarina já combinou com a Ana e as duas até já estão juntas, está a ver, são inseparáveis elas e mais a Marta Vanessa e a Filipa, ficam as quatro seguidinhas, seguidinhas é que era…

Enervo-me ao ponto de não abdicar do abecedário a marcar carteiras e ACABOU A CONFUSÃO PORQUE QUEM MANDA AQUI SOU EU! (respirar fundo  e contar até dez, prosseguir serenamente a aula)

Mas, é claro, isto foi só o começo. Não existe uma aula em que não tenha de exercer um autocontrolo pungente e exacerbado sobre mim própria, porque no meu íntimo sei, Deus do céu, que estes miúdos são, sem dúvida, o inferno na terra…

Por mais reforço positivo que dê ao Pedro, o ruivo, ao Bruno, o imberbe, ao Nélson, o espertalhão, ao Moisés, à Joana, à Priscilla, etc, etc; basta virar as costas para o quadro para ter metade da turma a falar com a outra metade.

Ó Nelson atira aí a caneta vermelha, Pedes-me autorização e vais buscar, aqui não se atiram coisas; Priscila vem almoçar comigo; Ó Diogo vira-te para a frente; Não sei porque é que te zangaste comigo, Jandira; Ó Marina está CALADA!; Lê o papel, ó Helena, passa o papel à Maria.; Este papel fica comigo até ao final da aula, para a próxima leio-o à turma; Ó stora aquilo não está mal escrito?; Não, cala-te e copia; Helena, almoças cá na escola amanhã? Diogo já compraste senha?; Ó PEDRO CALA-TE E VIRA-TE PRÁ FRENTE!! NELSON SENTA-TE E ESTÁ CALADO QUE EU NÃO TE MANDEI LEVANTAR;  Marina és uma parva!; parva és tu, Jandira (começa a chorar); stora, eu fui deitar o papel ao lixo; Mas eu não te autorizei! Senta-te, Nelson! Stora, o que está no quadro é para copiar para o caderno? É Pedro; ó Bruno, importas-te de não tirar macacos do nariz aqui na aula???? Porra, stora, não se pode fazer nada!

 

– Bruno, RUAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!!!!!!!!

 

– Mas o que é que eu fiz, stora, só porque tirei macacos do nariz?

– Não, Bruno; porque usaste um palavrão… (respiração ofegante e descontrolada)

– Mas ó stora, “porra” não é palavrão nenhum! Toda a gente diz.

– Toda a gente diz, mas não deve; ALÉM DISSO FOSTE INCORRECTO. Sai, se faz favor.

O Bruno sai e bate a porta com fúria. Silêncio.

Sento-me na secretária ante a expetativa geral da turma que aguarda o meu próximo movimento, enquanto inicio o registo da ocorrência ao diretor de turma que, felizmente para mim, é quem tem de digerir o pior pastel.

Ocorre-me apenas que esta é a primeira aula da tarde e questiono-me como irei conseguir arrastar-me até à próxima sala. Provavelmente estou a ficar velha, ou exausta com o meio do ano e a sobrecarga de burocracias, papéis e má-criação. O toque histérico, porém, causa-me um alívio destes penosos 45 minutos. Confesso, já não tenho a genica de outros tempos para dobrar a garotada…
sombras

To be continued…

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23 comentários

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    • vanessa on 23 de Fevereiro de 2015 at 21:39
    • Responder

    pura, crua e dura realidade…e eu ainda estou no começo desta viagem…

    • lima on 23 de Fevereiro de 2015 at 21:43
    • Responder

    Como me ri… Ainda por cima, amanhã tenho o 8ºD que é a cópia deste…

    • Sofia on 23 de Fevereiro de 2015 at 22:04
    • Responder

    Como a entendo. Eu tenho uma turma de um C Vocacional cujos episódios são surreais… cada aula é uma aventura!

    • Carlos on 23 de Fevereiro de 2015 at 22:12
    • Responder

    Eu não entendo como não se reclama com uma turma com mais de 30 alunos.

    • Susana Ramos on 23 de Fevereiro de 2015 at 22:15
    • Responder

    Ah! Mas agora é que isto vai acabar…
    Com o fim dos chumbos, já não serão repetentes… serão só tudo o resto, mas isso agora também não vem ao caso!

    • Lila on 23 de Fevereiro de 2015 at 22:24
    • Responder

    Vão-se preparando com as
    novas gerações pois não estão habituadas a um não, já se está a sentir muito mau
    comportamento no Pré escolar e ai que se diga alguma coisa aos queridos paizinhos.

    • Sofia Pereira on 23 de Fevereiro de 2015 at 22:57
    • Responder

    Revejo estes comportamentos nas minhas turmas… uma de currículo alternativo de 5º ano e outra de vocacional de 7º (em que um dos alunos vai fazer daqui a 2 meses 18 anos). Surreais as aulas… não existe qualquer tipo de material,… nem um pedaço de folha ou caneta… Mal nos conseguimos ouvir. Ou nos calamos à espera que acalmem e assim passamos a aula toda ou temos que por quase todos na rua porque são mt poucos os que não perturbam. Enfim!!! Uma realidade que estou agora a conhecer. 1ª vez numa TEIP e mm TEIP à séria! Já para não dizer que fiquei com turmas “não normais”.

    • Rui on 23 de Fevereiro de 2015 at 23:02
    • Responder

    O minar da autoridade do docente, tento por parte da sociedade como da parte do MEC, dá nisto. E isto ainda é brando. A sociedade nega-se a enfrentar a realidade de que as respostas que existem neste momento abrangem apenas uma parte dos alunos e que aos professores lhes falta a aureola para serem “santos” e fazerem milagres…

    • mocho4 on 23 de Fevereiro de 2015 at 23:11
    • Responder

    Sem dúvida. Tenho 30 anos de serviço e é isso ou pior. Então nos vocacionais…Temos 5 minutos de aulas com o mínimo de qualidade e estamos a espumar aos 15m de aulas.. O maior problema é mesmo a indisciplina. Indisciplina que nem sempre é o portar mal, o ser agressivo. muitas vezes é o desinteresse total a conversinha constante, as birras constantes. Confesso: estou farto disto

    • maria on 23 de Fevereiro de 2015 at 23:15
    • Responder

    pura, crua e dura realidade. Só quem vive esta profissão…

    • Marmelo on 23 de Fevereiro de 2015 at 23:21
    • Responder

    esperem lá isto é surreal !!!!!!!! Afinal os professores do 2º, 3º ciclo e Secundário trabalham? Ganham um salário miserável para levarem com turmas de 33 alunos ? Tem de avaliar estes mal educados? Tem a certeza?

    • manuela on 24 de Fevereiro de 2015 at 8:05
    • Responder

    Texto «delicioso» em que me revi do início ao fim…

    • Zé Lula on 24 de Fevereiro de 2015 at 8:58
    • Responder

    Sou professor há 19 anos, sempre odiei esta profissão. Passados estes longos anos odeio jovens, quando vejo um filme e surge um grupo de personagens mais novos, irrito-me. Detesto turmas bem ou mal comportadas, detesto a infantilidade das reuniões de Conselho de turma, detesto as burocracias patéticas saídas da cabeça de gente burra. Ansiolíticos e antidepressivos são o meu dia a dia e permitem-me sobreviver… no entanto sou considerado um dos melhores professores das escolas por onde passo. E porquê? Porque a concorrência é ainda pior.

      • desalinhada on 24 de Fevereiro de 2015 at 20:45
      • Responder

      Se odeia porque continua. MASOQUISMO.?

      • Zauberberg on 26 de Fevereiro de 2015 at 22:47
      • Responder

      Esta foi triste…. eu sou professora, adoro o que faço. Trabalhei numa TEIP…sobrevivi, fiquei mais forte. Colega (será??) VÁ À SUA VIDA!! O ensino não precisa de meuitas das coisas que tem, muito menos de um professor na profissão errada!

    • Armando Oliveira on 24 de Fevereiro de 2015 at 10:45
    • Responder

    A verdade nua e crua.

    • Libório on 24 de Fevereiro de 2015 at 15:00
    • Responder

    Confesso que ao ler este texto, achei que é o retrato de uma turma “normal”, isto, claro, comparado com umas certas turmas de vocacionais que eu conheço. Nesse sentido, confesso que até acho insignificante fazer uma ocorrência pelo uso de um palavrão tão “normal”.
    Há pessoas com sorte!

      • desalinhada on 24 de Fevereiro de 2015 at 21:02
      • Responder

      3 vocacionaise um PIEF ! Está tudo dito. A FAMÍLIA demite-se e alguns professores estão cansados e não querem estar para se chatearem e as direções desautorizam quem quer levar isto a sério. Isto é surreal.Brinca-se às escolas com uma pseudónimo inclusão! Mas não podemos deixar de ser profissionais a sala de aula não pode ser um espaço sem regras.Isto é o resultado do eduques. Um bom livro de Guilherme Valente para ler! NÃO desistam enquanto acreditarem!

        • desalinhada on 24 de Fevereiro de 2015 at 21:04
        • Responder

        Desculpem queria dizer pseudo inclusão! Amanhã começo às oito e meia com PIEF! Depois vocacionais…

    • Guest on 24 de Fevereiro de 2015 at 19:04
    • Responder

    Acabei de ter uma aula assim, mas com uma turma de 18 maravilhosos e interessados alunos 🙁

    • coasvaf on 24 de Fevereiro de 2015 at 21:37
    • Responder

    Cara Colega, felicito-a….exposição escrita tão serena, tão tranquila! Perante o típico quadro descrito…

    • Lurdes Paraiso on 25 de Fevereiro de 2015 at 20:48
    • Responder

    Uma descrição verdadeira… uma descrição muito comum das
    escolas portuguesas.

    Uma realidade que todos, mas mesmo todos aqueles que têm
    responsabilidade na definição de leis, na organização curricular, na definição
    de orientações para a organização escolar, enfim… todos os que decidem…procuram
    ignorar…

    Depois vêm os pais, aqueles, muitos, que nem comentam,
    porque desde que os seus educandos estejam “longe” dos seus tempos, dos seus
    domínios, dos seus olhares… ocupados…estarão sempre bem!

    Tudo uma cobardia, uma mentira, uma exploração, uma falta de
    respeito pela verdadeira formação cultural, social, emocional, académica dos
    alunos… uma total falta de respeitos pelos profissionais/professores, uma
    verdadeira vergonha, de que ninguém quer saber!

    • Paula on 26 de Fevereiro de 2015 at 21:28
    • Responder

    Eu tenho três turmas de C vocacionais e ao ler isto reconheci tudo o que se passa numa sala de aula quase a tempo inteiro…por isso não pude deixar de sorrir…Mas isto é desesperante porque sempre gostei de ensinar mas nos dias de hoje é aquilo que nestas turmas não se consegue fazer, é disciplina e disciplina e disciplina…

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