Ali aterrou na minha aula quase no final do segundo período.
Não falava uma palavra de português, inglês ou francês. Para que pudesse haver um entendimento mínimo , lembrei-me de pedir ajuda a um outro aluno mais velho, da mesma nacionalidade e que já frequentava a escola há alguns anos. Pedi-lhe que dissesse ao colega para se apresentar e que traduzisse a apresentação da turma. Fê-lo com alguma dificuldade uma vez que, explicou depois, apesar do país comum, o seu dialeto era distinto.
Por razões que não recordo, Ali, de 14 anos, não integrou naquele ano o português língua não materna e passava as aulas circunspeto e distanciado da turma, apesar do esforço de professores e colegas para que houvesse comunicação.
Por opção pessoal, voluntariei-me para lhe dar apoio extraordinário, de modo a que adquirisse o alfabeto, os fonemas, até iniciar, devagarinho, a leitura, a oralidade. Muitas vezes socorri-me de desenhos para pequenos truques de vocabulário e memorização que o faziam sorrir discretamente.
Porém, face ao incremento do trabalho burocrático, vi-me forçada a largar essa hora extraordinária e optei por dar esse apoio na aula de português, enquanto os restantes alunos, cumplicemente, faziam algum trabalho prático.
Certo dia, apercebi-me que ele abandonara a tarefa que eu lhe dera e lia com afinco um pequeno livro de orações. Isto repetiu-se diversas vezes daí em diante.
Outra vez, passando pela Biblioteca, vislumbrei-o a ver, com particular atenção, videos de um líder islâmico que vociferava a sua interpretação do Alcorão.
É claro que só percebi o conteúdo com a ajuda do tal aluno mais velho que, fortemente aculturado no nosso país, me ia ajudando a “ler” o novo aluno. Mas, admito, a coisa tornou-se um pouco assustadora…
Quando o ano acabou, Ali prosseguiu, apesar de tudo, pouco interessado em memorizar a nossa língua e mais empenhado no seu velhinho livro de orações. Eu prossegui a minha vida itinerante e nunca mais o voltei a ver.
Porém, depois disso, muitas vezes me questionei sobre a capacidade de resposta que os professores conseguem dar a estas situações que deixaram de ser tão pontuais na nossa sala de aula, independentemente, das nacionalidades que aí se aconchegam.
Era suposto a escola ser um espaço de liberdade, de aprendizagem, de partilha. Tal como, arrisco, a redação de um jornal.
Onde cabem a liberdade, igualdade e fraternidade, quando não falamos a mesma língua dos que nos são próximos? Quando os seus valores são tão díspares dos nossos que nem a escola se constitui como espaço de partilha e comunicação?
Como podemos combater o medo? O medo do outro…
Quando a pluralidade humana se dilui sobre os tiros de uma metralhadora, disparados porque não se admite brincar com coisas sérias, apesar de o riso ser, afinal, a linguagem que nos aproxima a todos; então, chegou o momento de nos questionarmos enquanto civilização.
Chegou o momento de, tal como a França será obrigada a fazer agora, procurar respostas sobre como lidar com a diversidade.
E essa é, realmente, uma questão para a qual não será, de todo fácil descobrir um caminho. É que a História tem o estranho hábito de se reinventar, mas é dela que depende o futuro.
Pessoalmente, também acredito que “Allahu Akbar”- Deus é grande, porém ele é ainda maior quando o defendemos com um lápis na mão, em vez de uma Kalasnikov nos braços.
E, muito provavelmente, é aí que a escola pode fazer a diferença…