Ao pôr título a esta crónica, não pude deixar de relembrar António Nóvoa e a sua tese de doutoramento sobre o tempo dos professores[1]. O fantasma que hoje nos ameaça é saber se esse tempo está para durar ou se está a chegar ao fim.
Vivemos num clima de agressão aos professores. Exagero? Quando um professor é obrigado a lecionar a 300, 400 ou mais quilómetros da sua residência sem qualquer remuneração compensatória, é o quê? Quando tem de procurar uma segunda residência sem qualquer ajuda, é o quê? Quando é afastado compulsivamente do cônjuge e dos filhos, haverá maior forma de violência? Quando tem de deixar os familiares idosos a envelhecer solitários, sem ajudas, é o quê? Os vencimentos dos professores, licenciados, mestres e doutores, ganhando menos do que tantos profissionais com habilitações de baixo nível, ou ganhando um terço, ou menos, do que ganham licenciados de outras áreas, isto é o quê?
Se os professores desertaram não foi por causa dos bons tratos, mas pela desvalorização galopante a que foram submetidos, pela desvalorização da escola e da educação. E voltamos a uma nova etapa em que “para professor qualquer serve”. Vão ser contratados, como professores, milhares de candidatos que não o são, milhares de pessoas sem outro arrumo na vida que não seja exercer uma atividade para a qual não tiveram nenhuma formação.
E vem-me à memória um episódio vivido há 30 anos, em África, numa ação de formação de inspetores e diretores de escolas, alguns a lecionar uma classe. Um deles levantou-se e disse: “Professor, eu odeio os alunos. Quando entro na sala e vejo aqueles olhos todos em cima de mim, à espera, e eu sem saber o que fazer, a minha cabeça só tem ódio para lhes dar”. Estávamos no período que se seguiu à libertação e independência, com a deserção de milhares de professores europeus que se viram forçados a partir, e com as empresas a recrutar todos os que sabiam ler e escrever, deixando as escolas à deriva. Nas devidas proporções, enfrentamos um problema da mesma natureza.
Para entrar na carreira docente, eu fiz uma licenciatura de 5 anos, com apresentação e defesa de dissertação, um curso de Ciências Pedagógicas com 5 unidades curriculares, um estágio em Liceu Normal, 4 estágios de verão em universidades francesas, no total mais de 500 horas de formação especializada, e outras tantas horas em dezenas de retiros semanais de formação com especialistas internacionais em Portugal. Sim, foi o período das vacas gordas com financiamento estrangeiro, como sempre. Não, a formação desse tempo não é a mesma que requerem os professores e alunos de hoje. Eu só queria que hoje se olhasse para a educação com o mesmo empenho e investimento que teve e deixou de ter. E mais: nunca tive de pagar matrículas ou propinas para a formação especializada, nem mesmo o doutoramento. Só queria que os meus colegas de hoje tivessem as mesmas oportunidades e os alunos de hoje os mesmos benefícios. Nenhuma terra produz se não se lhe lançar a semente.
O ambiente natural para a socialização, educação e aprendizagem dos alunos é a escola. Em comunidades educativas e ambientes de aprendizagem. Este é, por agora, o meio natural das relações humanas. E é também o meio natural para a formação e aprendizagem dos professores. A formação em contexto de trabalho, em comunidades de aprendizagem, com assistência às práticas dos professores na sua relação com os alunos, e a análise, reflexão e partilha de saberes em torno das práticas observadas, este é por enquanto o melhor caminho que conhecemos.
A verdade é que este modelo vai sendo sistematicamente substituído pela formação online, com estágios profissionais exclusivamente online, por vezes com leituras obrigatórias de há 30 anos atrás. Acompanhei recentemente o estágio de um parente próximo numa conceituada universidade estatal, todo online, todo a cheirar a mofo, com estratégias de aprendizagem e avaliação vexatórias. Dá vontade de procurar emprego em todo o lado, menos numa escola.
Eu sei, generalizar é sempre um risco e uma injustiça para quem ainda sabe trabalhar a formação em moldes adequados ao tempo, à ciência e às tecnologias de que hoje dispomos. Indispensáveis. Mas as políticas que vejo e observo parecem todas inclinadas para a queda desamparada no online, por incapacidade ou inexistência de docentes em regime presencial. Oxalá me engane e que os deuses não me oiçam.
[1] Novoa, Antonio, Le temps des professeurs. Analyse socio-historique de la profession enseignante au Portugal, XVIII-XX siècles. Lisbonne: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987.
José Afonso Baptista