Dar aulas é diferente de entrar na carreira docente – Luís S. Braga

 

A linguagem é uma coisa lixada. E nas mãos de um linguista….
Esta reação noticiosa do governo é um truque de linguagem, que resulta de as questões técnicas da carreira docente serem, isso mesmo, técnicas e terem uma linguagem específica que, transmitida em público menos conhecedor, permite dizer asneiras e fazer de conta que se acerta.
O título desta notícia é para enganar. O título desmente o que não precisa de ser desmentido.
“Dar aulas” não é “entrar na carreira”.
O problema que se coloca não é sobre “entrar na carreira”.
É sobre dar aulas.
Era o que faltava que para se entrar na carreira profissional de professor se pudesse não ter a habilitação profissional. Por isso, o ministro vem desmentir o que não está em discussão.
O que está em discussão, e eu discuto e não me considero esclarecido, é o dimensionamento das habilitações ditas próprias.
Uma habilitação PRÓPRIA é aquela que não permite entrar na carreira, por falta de formação pedagógica, mas reúne todas as condições científicas para lá poder aceder (se fizer a formação pedagógica).
Antigamente ainda havia o conceito “inferior” de habilitação SUFICIENTE (hoje paralelo a um outro conceito, que existe na lei, de “habilitação adequada” que, na prática, nem está muito bem definido no concreto).
A lógica é clara (desde 2006):
1. O nível mais alto e preferencial de habilitação chama-se profissional e implica ou mestrado pedagógico ou licenciatura pré-bolonha com formação pedagógica (simplificando a descrição) – Nota: por isso, já HÁ (só) licenciados a dar aulas e que continuarão a dar até ao fim da carreira com habilitação profissional.
2. A seguir, em oferta de escola (que não ao concurso nacional, reservado a profissionalizados), podem concorrer os licenciados ou mestres de listas de graus que conferem habilitação própria (estão publicados). Mas não são cadeiras ou similares de formação: é a posse de um certo diploma titulado de determinada forma. Habilitação própria tem quem ter certo diploma que, até pela via do tempo de serviço acumulado, permite aceder a formação pedagógica para ser profissionalizado.
3. Antigamente, havia a chamada habilitação suficiente (pessoas que, não havendo quem desse as aulas, eram aceites como remedeios para não haver buracos de falta de professores). A dada altura, nos anos 80, tive por essa via professores com o 11º ano a dar-me francês ou professores com o 12º a dar-me geografia do 11º…. Foi bonito…
A habilitação suficiente acabou. E bem. O ministro quer ressuscitar o conceito (mas como é escandaloso dizer isso, diz que é habilitação própria que estamos a discutir).
Para dar aulas, ou se é profissionalizado, ou se tem uma licenciatura ou mestrado que, considerados como um todo (e não porque há lá umas cadeiritas) conferem habilitação própria. Por exemplo, quem não tiver grau nenhum mas tiver as cadeiritas escolhidas, vai poder dar aulas e “ir entrando” no sistema? No passado isto aconteceu e deu sarilho.
O que se quer fazer é, dizendo que é habilitação própria, permitir que “umas cadeiras” ou parte de licenciaturas (Pós-Bolonha ou não) passem a ser admissíveis para dar aulas. Enquanto durar a falta de professores.
Eu sei que a discussão até podia ser mais vasta: discutirmos a qualidade intrínseca da formação que se anda a fazer, desde que acabaram os estágios integrados de um ano (e se criaram mesmo nas ESE os cursos de educação básica, com mestrados atrelados).
Mas, sem entrar nisso, que era conversa longa, o ponto de partida que não admite discussão, é que habilitação é posse de um diploma mínimo, não de cadeiras soltas, que podem ser subjetivamente valoradas e nem ser comparáveis na duração e conteúdos.
Eu sei que a fome de disfarçar a b(u)orrada que se fez na gestão de recursos humanos docentes nas últimas décadas justifica meios muito expeditos e urgência, depois de se ter acordado da modorra preguiçosa de governar. Mas não se corrigem asneiras com asneiras. Esta mentalidade de bombeiro excitado em educação dá mau resultado.
E eu sei também que a vontade de acabar com o concurso nacional de professores é muita…mas batota não.
Até porque as habilitações tem de ser comparáveis em concursos públicos e como se vai comparar, com justiça, cadeiras “mesmo robustas” com cursos completos….
E ao dar certas liberdades às escolas ainda vamos ter o problema de supostos direitos adquiridos, que já temos nos Técnicos especializados, onde a desregulação já faz caminho e, tantas vezes, “ficam os que estão” de que “já se conhece o trabalho” (mesmo se, antes de trabalharem, a desculpa foi o currículo que outros até tem agora melhor mas não lhes serve agora de nada).
Volto a perguntar: obviamente ninguém me proporia ou consideraria para a carreira médica mas, com a minha ignorância clínica, o meu pavor de sangue e falta de precisão a cortar, alguém me deixaria fazer uma cirurgia, num hospital público, UMA QUE FOSSE?
Vale a pena ter um curandeiro só porque não há médicos?
Não será melhor pagar mais aos médicos que há? (esperem aí…..nos médicos não é isso que estão a fazer?!?)
Não acham curioso que nesta discussão não se fale de horas extraordinárias a quem já está nas escolas? (eu sei porquê mas agora ainda não digo…

 

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