2 de Fevereiro de 2025 archive

Quando o silêncio das escolas se torna cúmplice – João Massano

Um vídeo chocante de uma escola na Moita expôs recentemente a cruel realidade que muitas crianças autistas enfrentam diariamente.

Quando o silêncio das escolas se torna cúmplice

Um estudante de 14 anos, diagnosticado com autismo, foi brutalmente agredido por um colega mais velho, sendo agarrado pelo pescoço, derrubado e repetidamente pontapeado, enquanto outros alunos filmavam o incidente sem intervir.

Este episódio perturbador não é um caso isolado, mas sim um reflexo de uma crise sistémica que assola as nossas escolas.

O incidente na Escola Básica Fragata do Tejo revela padrões alarmantes no nosso sistema educativo. Crianças autistas, muitas vezes com dificuldades de comunicação, tornam-se alvos fáceis devido a incompreensão e estereótipos.

A passividade dos colegas que optaram por filmar em vez de ajudar normaliza a violência. A suspensão do agressor só ocorreu após intervenção policial, indicando falhas graves na prevenção e gestão destes incidentes.

A estigmatização leva ao isolamento progressivo, trauma psicológico duradouro e evasão escolar. No caso da Moita, os pais do jovem agredido estão a considerar mudar o filho de escola, evidenciando o sentimento de insegurança e desconfiança no sistema educativo.

A SITUAÇÃO ACTUAL

Um levantamento recente realizado pela FENPROF em 2023/2024, abrangendo todos os distritos do continente e envolvendo 112.187 alunos, 12.157 docentes e 5.266 assistentes operacionais, revelou dados preocupantes.

Os diretores dos Agrupamentos de Escolas e Escolas Não Agrupadas (AE/ENA) afirmaram que o número de Docentes de Educação Especial (73%), Assistentes Operacionais (78%) e Técnicos Especializados (85%) era insuficiente.

Além disso, apenas 6% dos Assistentes Operacionais têm formação específica para trabalhar com alunos com medidas seletivas e/ou adicionais.

A exclusão de alunos autistas manifesta-se a nível estrutural e social. As escolas frequentemente carecem de formação especializada para professores, planos individualizados de integração e equipas multidisciplinares permanentes.

Este inquérito levantamento da FENPROF mostra que os alunos com medidas seletivas e adicionais representam cerca de 8% do total dos alunos, com 3,5% recebendo apenas apoio indireto do Docente de Educação Especial.

Cerca de 20% das turmas estão constituídas ilegalmente, com mais de 2 alunos com necessidades específicas e/ou mais de 20 alunos por turma.

Quando questionados, 83% dos diretores afirmam que seus AE/ENA não têm os recursos necessários para uma educação verdadeiramente inclusiva.

UM PROBLEMA ENRAIZADO

Relatos de maus-tratos, negligência e exclusão de crianças neurodivergentes são alarmantemente frequentes nas escolas portuguesas, conforme evidenciado pelos testemunhos recebidos pelo Movimento para uma Inclusão Efectiva.

Um caso ilustrativo é o de uma criança de 7 anos, diagnosticada com síndrome de Asperger, que enfrenta dificuldades significativas na adaptação escolar devido à falta de apoios adequados.

Apesar dos pedidos dos pais desde o jardim de infância, a escola alega não ter recursos disponíveis, resultando em exclusão social e problemas emocionais para a criança.

Outro caso preocupante envolve uma criança de 3 anos, com diagnóstico de autismo e atraso global de desenvolvimento.

Ao tentar matriculá-la, a mãe foi informada que a escola “não tem condições” para receber o seu filho, sendo encaminhada para outra instituição.

Esta atitude viola claramente as directrizes do Ministério da Educação, que indicam que qualquer escola deve estar apta a receber crianças com Necessidades Educativas Especiais (NEE).

EXCLUSÃO E BULLYING

A história de um aluno diagnosticado com hiperatividade e défice de atenção, e posteriormente com Síndrome de Asperger, revela um padrão perturbador de exclusão e incompreensão.

Desde o 1º ano, a criança enfrentou dificuldades de adaptação, sendo frequentemente alvo de intervenções policiais na escola.

A falta de compreensão levou a acusações de instabilidade familiar e até a uma ordem judicial para os pais frequentarem uma formação parental, sem que a escola fornecesse o apoio adequado.

O caso de outro estudante com TDAH demonstra como o bullying pode ser institucionalizado.

No 7º ano, a directora ligava constantemente à mãe devido a conflitos e numa reunião de pais, várias mães solicitaram a reprovação e suspensão deste aluno e outros com mau comportamento, revelando uma profunda falta de empatia e compreensão das necessidades especiais.

NEGLIGÊNCIA E FALTA DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL

A história de uma criança surda ilustra a falta de preparação das escolas para lidar com a neurodiversidade.

Aos 5 anos, após anos de diagnóstico tardio e falta de apoio adequado, a criança foi finalmente integrada numa turma de surdos.

No entanto, no ano seguinte, foi-lhe atribuída uma educadora sem qualquer conhecimento prévio do ensino a surdos ou de Língua Gestual Portuguesa (LGP), que escolheu a turma “porque achou que era giro”.

O caso de uma criança diagnosticada com Síndrome de Asperger no 1º ano demonstra como a falta de estabilidade e apoio adequado pode levar a retrocessos significativos na aprendizagem.

Após três mudanças de professoras titulares em setembro, a criança perdeu a capacidade de reconhecer letras que anteriormente identificava com facilidade, além de ter desenvolvido problemas comportamentais.

A LUTA DOS PAIS POR INCLUSÃO E JUSTIÇA

Os pais destas crianças enfrentam uma batalha constante.

O testemunho de uma mãe de um aluno autista não verbal teve que entrar na sala de aula com o filho durante dias para explicar à professora como lidar com ele, enfrentando a rejeição da comunidade escolar e a pergunta sobre a razão pela qual não colocava o filho numa “escola para crianças assim“.

Outra mãe relata a frustração de tentar obter apoio da escola. Após solicitar uma reunião urgente para discutir as preocupações sobre o filho, passou mais de um mês sem obter resposta.

Quando apresenta queixas, a coordenadora adopta uma postura defensiva, insinuando que os problemas podem ter origem em casa, desviando o foco da necessidade de encontrar soluções.

UM APELO À MUDANÇA

A inclusão real exige mudanças profundas no sistema educacional:

  1. Formação obrigatória para professores: Todos os profissionais da educação devem ser capacitados para compreender e atender às necessidades das crianças autistas.
  2. Planos Individualizados: Cada aluno deve ter um plano pedagógico adaptado às suas necessidades específicas.
  3. Equipas Multidisciplinares: Psicólogos, terapeutas ocupacionais e outros especialistas devem estar disponíveis nas escolas para apoiar alunos e professores.
  4. Protocolos contra o bullying: Medidas claras para prevenir e lidar com casos de violência devem ser implementadas em todas as instituições.
  5. Sensibilização comunitária: Campanhas educativas podem ajudar a combater estigmas e promover a aceitação da neurodiversidade.

O caso da Moita não é sobre um aluno, um agressor ou uma escola isolada.

É um reflexo do que falhamos colectivamente em construir: um sistema educativo onde a diferença não é punida, mas protegida e valorizada.

Até criarmos verdadeiros espaços de inclusão, continuaremos a testemunhar incidentes chocantes e a questionar quem realmente está a falhar com as nossas crianças.

É imperativo que a sociedade portuguesa, desde decisores políticos a educadores e pais, una esforços para transformar as nossas escolas em ambientes seguros e acolhedores para todos os alunos, independentemente das suas necessidades específicas. Só assim poderemos garantir um futuro verdadeiramente inclusivo e justo para todas as crianças.

Estes casos não são exceções, mas sintomas de um sistema que falha em compreender e acomodar a neurodiversidade.

É fundamental que Portugal adopte medidas concretas para transformar as suas escolas em espaços verdadeiramente inclusivos.

O futuro de Portugal depende da nossa capacidade de criar uma sociedade verdadeiramente inclusiva, começando pelas nossas escolas.

Não podemos continuar a ignorar o sofrimento silencioso de tantas crianças.

É hora de quebrar o silêncio e transformar as nossas escolas em espaços onde cada criança, independentemente da sua neurodiversidade, possa aprender e crescer em segurança e dignidade.

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Violência escolar: a falta de “funcionários” explica tudo?

Quando ocorre algum episódio de violência em contexto escolar vem quase sempre à baila o argumento da falta de “funcionários”, muitas vezes apontada como a principal causa que impede a vigilância adequada dos espaços existentes em cada estabelecimento de ensino…

Sem fugir a essa “regra”, e apenas como mais um exemplo do anterior, também a Direcção do Agrupamento de EscolasFragata do Tejo (Moita) mencionou esse problema, na reacçãoàs agressões bárbaras infligidas a um aluno autista de uma Escola Básica desse Agrupamento no passado dia 24 de Janeiro:

A direção do estabelecimento de ensino disse à RTP que já suspendeu o agressor e explicou que no local não estavam adultos porque há falta de funcionários. Já no dia anterior tinha havido outro caso de agressão na mesma escola.” (RTP Notícias, em 28 de Janeiro de 2025)…

Fazendo fé nas declarações anteriores, que alegam a falta de funcionários, e acreditando que essa carência também se verifique em muitas outras escolas, pergunta-se:

Se efectivamente não existem funcionários em número suficiente para assegurar as imprescindíveis condições de segurança porque se arrisca manter abertas as escolas onde exista tal insuficiência?

Se existe uma correlação entre a insuficiência de “funcionários” e a ocorrência de episódios de violência em contexto escolar, se não é possível exercer uma vigilância interna adequada, porque não se assume isso de forma peremptória, em primeiro lugar perante a Tutela, mas também junto dos pais/encarregados de educação?

Frequentemente, gera-se a desconfiança de que existirão muito mais casos de violência escolar do que aqueles que são conhecidos ou reportados…

Se assim for, muitos desses casos acabarão escondidos, “atirados para baixo do tapete”, mantidos na penumbra ou disfarçados, pelo que nunca constarão em qualquer registo ouestatística oficial, tanto ao nível de escola como ao nível das estruturas do Ministério da Educação… No fundo, acabarão como se nunca tivessem existido…

 Quantas mais “desgraças” serão necessárias para deixar dese “varrer para baixo do tapete”, o fenómeno da violência em contexto escolar?

No geral, as Direcções de Agrupamentos parecem considerar a violência em contexto escolar como um tema “maldito” e de difícil admissão, independentemente de quem sejam as vítimas ou os agressores…

 

A actuação de muitas Direcções face ao fenómeno da violência escolar parece ir, frequentemente, no sentido de tentar preservar, a todo o custo, uma imagem pública da escola que se pretende “imaculada”, minimizando-se, muitas vezes, o número de ocorrências daquela natureza, ao mesmo tempo que se costuma relativizar a gravidade das mesmas…

 

Aqui, como em tantas outras situações, importa salvar as aparências…

 

E a principal consequência dessa conduta pode resultar numa certa “normalização” da violência escolar, acabando-se por aceitá-la, implicitamente, como uma inevitabilidade…

Obviamente que a escola, enquanto palco de múltiplas relações interpessoais, nem sempre será um lugar idílico e pacífico…

A escola poderá constituir-se como um contexto propício para se estabelecerem muitos companheirismos, solidariedades, desafios, realizações e vitórias, mas também, e em simultâneo, muitas frustrações, fracassos, tensões, competições e conflitos, individuais e/ou de grupo…

 

Em suma, e sem dramas desnecessários, a escola é uma entidade passível de suscitar uma certa ambivalência afectiva e emocional, um lugar onde poderão coexistir sentimentos opostos e contraditórios, um lugar onde facilmente se misturam e alternam o “Amor” e o “Ódio”… 

 

 E isso parece válido para todos os que diariamente passam a maior parte do seu dia numa escola

 

Apesar da “natural e expectável turbulência” presente em cada escola, inerente à convivência entre seres humanos, poderão existir vítimas de violência psicológica e/ou físicaque, sejam quem forem, não poderão ser silenciadas nem ignoradas…

Escusamos de ter ilusões: com maior ou menor frequência, com maior ou menor intensidade, em todas as escolas se verificam episódios de violência... Em algumas, esses episódios assumem um carácter esporádico, noutras tornam-se praticamente endémicos…

 

Em qualquer dos casos, o pior que poderá acontecer numa comunidade escolar será enraizar-se a convicção generalizada de injustiça e de impunidade perante actos de violência, por vezes traduzido por esta afirmação: “Todos sabiam, mas ninguém fez nada”…

E essa cobardia será sempre absolutamente indesculpável e inaceitável

Não pode deixar de haver condenação e punição efectiva dos comprovados agressores, sempre proporcional à gravidade dos actos praticados

Não é possível enfrentar o problema da violência em contexto escolar com a seriedade que o mesmo exige sem que as escolas, sobretudo na figura das suas Direcções, consigam, em primeiro lugar, assumir a existência do problema e, em segundo, exigir junto da Tutela, entre outros, os recursos humanos em falta

E, já agora, em vários dicionários de Língua Portuguesa,exigir significa reivindicar, intimar ou impor como condição… Nada menos do que isso…

Sempre que se torna público algum episódio de violência em contexto escolar costumam “acordar” e manifestar-se muitas consciências indignadas, mas depois de algum tempo regressa a “normalidade” e espera-se naturalmente que o mesmo seja esquecido…

Seja esquecido, mas só até à próxima ocorrência… Aí voltar-se a falar sobre o maldito fenómeno, como se não fosse possível a sua existência ou como se o mesmo fosse algo muito estranho, nunca antes visto, ou como se ninguém o esperasse

E é este o nosso fado… Vamos varrendo para baixo do tapete o que nos incomoda, fazendo de conta que, dessa forma, se eliminam os problemas…

Mas não os eliminamos, apenas os colocamos fora do alcance do nosso campo de visão…

A violência em contexto escolar é um fenómeno complexo,com múltiplas variáveis, que não pode ser reduzido à alegada falta de “funcionários” e apenas explicado por essa insuficiência, ainda que essa condição possa, de facto, contribuir para a respectiva ocorrência

Portanto, a falta de “funcionários” não explica tudo… Não pode explicar tudo… Estará muito longe de explicar tudo…

A falta de “funcionários” talvez seja, até, a explicação mais simplista e reducionista do fenómeno da violência em contexto escolar…

A falta de “funcionários” talvez seja, até, a explicação mais “confortável” e “asséptica” do fenómeno da violência em contexto escolar…

Paula Dias

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