“De uma vez por todas o país tem de compreender que o maior défice que temos não é o das finanças. O maior défice que temos é o défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação”. Quem disse isto, no Palácio da Bolsa, a 3.12.2017, foi António Costa, primeiro-ministro de um país onde muitas crianças só comem uma refeição por dia, fornecida pela escola, onde estudantes abandonam estudos por falta de meios, onde os sem-abrigo persistem nas ruas das grandes cidades, onde as reformas de muitos velhos não chegam para a alimentação e medicamentos, onde muitos têm de emigrar para sobreviver e alguns se suicidam, por fome e vergonha. O mesmo que acaba de preferir a continuidade degradante das políticas de Educação dos seus governos à transformação necessária.
Perante a realidade educacional visível, em baixa, não entendo as expectativas, em alta, que surgiram na imprensa (confederações de associações de pais, associações de directores e ensino privado) quanto ao que se pode esperar do novo ministro da Educação. Como se o futuro expectável não fosse a continuidade do que fez nos últimos seis anos. Com efeito, João Costa é agora ministro de jure. Mas foi ele, de facto, que governou o ministério nos últimos seis anos. É realista esperar que faça agora o que não fez antes? É realista esperar que altere agora, como seria necessário, a organização pedagógica e curricular que moldou nos últimos seis anos? É realista esperar que neutralize agora, como seria necessário, os lobbies que criou e protegeu nos últimos seis anos?
A análise do discurso de João Costa, assente na retórica provinciana do “aluno do século XXI”, do “trabalho de projecto”, da “flexibilidade pedagógica”, do “trabalho em rede” e dos “nados digitais”, expõe uma mistura de lemas gastos com teorias pedagógicas que foram abandonadas porque falharam, depois de terem lançado a confusão no sistema de ensino.
Quando se junta hoje a melodia das “aprendizagens essenciais” ao estribilho da “flexibilidade pedagógica”, vemos o que a música de João Costa deu: um desconcerto nacional, particularmente para os que já chegam à Escola marcados pela sorte madrasta de terem nascido em meios desfavorecidos. Porque a inovação pedagógica do aprender menos não remove o insucesso. Mascara-o. Porque os experimentalismos assentes no abaixamento da fasquia não puxam pelos que ficam para trás. Afundam-nos. Porque o escrutínio sério das políticas educativas de João Costa, que só um pensamento crítico livre de contaminações ideológicas permite, demonstra-o.
Das celebrações fátuas de João Costa sobressai um excelente diploma sobre educação inclusiva. O que o atrapalha é a realidade: as escolas que temos, os meios que não temos e os alunos que existem com necessidades educativas especiais severas. Ter todos dentro da mesma escola é um excelente princípio, que nenhum civilizado contesta. Mas não o concretizamos fingindo que determinados alunos podem dar respostas que sabemos que nunca poderão dar, pedindo do mesmo passo aos restantes que fiquem parados. É isto que João Costa tem promovido: uma exclusão dupla, mais gravosa ainda para os que nasceram diferentes.
João Costa passou seis anos, laboriosamente, a desregular todo o mecanismo de avaliação do desempenho do sistema de ensino (anulando a comparabilidade dos dados recolhidos ao longo dos tempos), a desconstruir a estrutura curricular e a produzir normativos e formação em torrentes sobre o que deve ser feito no âmbito da autonomia das escolas, promovendo, assim, o mais hipócrita homicídio, à nascença, dessa mesma autonomia. As fotos que o representam vestido de escuteiro e uns números giros de filosofia Ubuntu e avaliação MAIA dão-lhe a credibilidade com que uma parte da comunidade se contenta. Deus abençoe esses sacristas.
Em penúltima instância, a culpa da situação a que chegámos é de uma oposição política castrada. Em última, é de quem percebe o desatino e se resigna. Afinal, é graças a essa resignação e à cumplicidade ululante dos sacristas do momento que continuaremos a ser esmagados e enxovalhados. A Educação está tão desgraçada que dificilmente alguém a poderá desgraçar ainda mais. António Costa inspirou-se em Tiririca: pior não fica.
In “Público” de 30.3.22
9 comentários
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um povo inculto e dócil sempre foi mais fácil de dominar com um partido único!
Análise sublime. Muito bem.
Tenho dúvidas sobre se isto não pode ficar pior, pois nos últimos 20 anos temos visto que há sempre um outro nível por baixo do inferno onde já vivemos…
Bravo, Santana Castilho. Pura Literatura, pura História da cultura e das mentalidades. Está a escrever os textos que explicam o presente com que o futuro nos julgará.
Santana Castilho
Excelente texto. As escolas que temos, os meios que não temos e os alunos que temos.
Parece a anedota do bêbado que ia pela estrada, viu uma árvore que era e outra que não era, viu um touro que era e outro que não era, o touro que era veio em direção a ele, subiu para a árvore que não era e ficou todo esfrangalhado. Nós também temos ido pela estrada fora, convencidos a toda a hora que vamos subir para a árvore que era , mas não, e vem sempre o touro que era.
Já tive a oportunidade de comentar a alegria de saberem quem iria ser o ministro. Também na altura respondi o mesmo. “Mas foi ele, de facto, que governou o ministério nos últimos seis anos. É realista esperar que faça agora o que não fez antes?” Nós não tivemos ministro durante estes anos como todos sabem, por isso foi o ministro sem pasta que mais tempo esteve no governo desde o 25 de abril.
O que poderá mudar?
Vamos buscar os modelos expirados em ouros países, mas com a filosofia Ubuntu, tudo se vai resolver, ela é dominante em países subdesenvolvidos, o que somos nós agora?
Admira-me que os professores no fim da década de 80, tenham feito a maior greve às avaliações e conseguiram tudo o que queriam, por causa dos “titulares” e “ADD” se tenham juntado em Lisboa na maior manifestação de sempre. Agora com , os senhores diretores e seus acólitos donos do pedaço, com uma avaliação completamente injusta, tendenciosa, malévola, a terem que deixar transitar todos os alunos por causa das avaliações externas, com a burocracia que não dá tempo para trabalhar com os alunos (preenchem-se tantos papéis que se deixam morrer os doentes), com os conselhos gerais, autarquias, políticas, perda de tempo de serviço, etc., enfim tudo acontece a um simples professor. MAIA, PADDE, Flexibilidade, Cidadania, PNL, BE, EMAEI( a tal inclusão não inclusiva), Plano tecnológico…
Um mal estar docente em que cada um está a olhar por cima do ombro, porque pode virar o pescoço e alguém ir “bufar” que ele estava…
Assiste-se a uma passividade, nunca vista por parte dos professores que parece terem desistido. Não sei o que se passa, assim de repente, sem dados de suporte, talvez os que lutavam antes, estejam velhos como eu, já não faço 1000Km para ir a uma manif. , para trabalhar já fiz 1400Km por semana (1992) , 210km por dia(1993), que me lembre estive pelo menos 14 anos seguidos sem nunca dar uma falta, e era feliz, agora estou onde resido e recordo com saudade a amizade, o convívio, os afetos, o companheirismo, etc. , pois não sou feliz.
Sou observadora e informada, quem assim for atualmente é areia na engrenagem.
Eu anseio o caos, pois a seguir virá sempre a ordem. Infelizmente teremos de ir ao fundo para que haja uma regeneração. Com estes lunáticos que dirigem a educação, que agem como se fossem salvadores e os grandes génios do ensino, a degradação da escola pública viaja em velocidade de cruzeiro. Com este sistema, serão muito poucos aqueles que ingressarão na carreira docente. O funeral da escola pública estará a virar da esquina. O inferno está cheio de boas intenções.
Texto que só não o compreenderá quem não conhecer e não vivenciar, bem de perto, o que se passa com a Educação. Temos Professores exaustos, desmotivados com projetos e mais projetos, com papéis e mais papéis para preencherem até à exaustão… Desmotivados sem nos prendermos com aspetos salariais, mas pela desvalorização do trabalho docente, a falta de tempo para preparar as aulas de modo também a motivar os alunos! Os alunos andam completamente apáticos, alguns chegam a afirmar “sei que não chumbo”… o que isto?1 É tirar mérito ao trabalho de outros alunos que na realidade estão interessados em aprender… Mais não necessito referir porque tudo que teria a dizer resume-se nisto: “…a Educação está premiar quem nada faz, nada aprende porque nada quer aprender, levando os professores à desilusão, à desmotivação, à exaustão … ” Quanto mais imbecis, analfabetos, que sabem ler mas não sabem o que estão a ler, tivermos melhor para os decisores deste País!!!
Observo na minha escola um ainhamento com o facilitismo no sentido em que são dadas oportunidades consecutivas aos alunos para alcançarem o sucesso escolar e quando estes não ao atingem, o professor atribui-lhe uma classificação que nao comprometa o professor.
O único perdedor neste “jogo” é o aluno.
Será que quem decide sabe disto?
Bravo Santana, excelente texto , era muito bom que o sr. Ministro tivesse conhecimento dele e dos comentários excelentes e verídicos dos colegas, só assim poderiam aprender alguma coisa, mas infelizmente isto vai ser mais do mesmo…Pobre País , cada vez mais na cauda da Europa!