“Enquanto morrer não hei de esquecer aquele silêncio.
O dia 25 de Abril, ao contrário do que era o normal, começou com um enorme vazio. O rádio que os guardas costumavam ligar às primeiras horas da manhã na sala de convívio do Pavilhão B, permitindo que ouvíssemos a emissão da Renascença, não estava em lado nenhum. Tinham-no retirado.
O guarda de serviço ao pavilhão B argumentou que estava avariado e fora para reparação.
E, logo ali, percebemos que alguma coisa acontecera. Foi como que uma premonição que ficou a pairar no ar. O silêncio implicava que nos queriam cortar a ligação ao exterior e isso só podia querer dizer algo…
Entreolhávamo-nos, questionando e apresentando hipóteses em surdina. Nessa altura, creio que todos tivémos medo. Não se sabia o que estava a acontecer (…). O pior foi a hora das visitas, porque não pudemos ver ninguém.
Um grupo de presos organizou-se e exigiu que o Diretor da Cadeia os recebesse. Mais silêncio.
Não sabíamos, é claro, que, rio acima, rio abaixo, os cravos iam pintando todo o país.
Oitenta e nove mil quilómetros quadrados de passos são muitos passos para andar, Abril marchando, um país a fazer-se poema, a rosa e a espada calando a espingarda.
E nós, é claro, tivémos de esperar em silêncio, na ignorância e no desconhecimento.
Dentro do pavilhão, cada vez mais isolado, o chefe dos guardas foi coagido a confessar: ocorrera, em Lisboa, um levantamento militar, sob a direção do Movimento das Forças Armadas e do general Spínola. (…)
Quando esta informação circulou, como um rastilho, houve um júbilo imediato. Vivas proferidos aos altos berros, a euforia e a esperança contaminaram-nos a todos, como uma faísca rebentando uma barragem.
Porém, logo de seguida, hesitámos. Afinal, podia ser um golpe militar para depor uma forma de ditadura e a substituir por outra. Um burburinho de receio e dúvidas impeliu-nos a agir com celeridade.
Muito, muito rapidamente, organizámo-nos, porque, ao mesmo tempo, percebemos que as nossas vidas e a nossa liberdade podiam estar em risco.”
(O Processo, 2025)