2 de Março de 2025 archive

NUNCA GOSTEI DA ESCOLA. – António Galopim de Carvalho

Nunca gostei da escola de São Mamede!
A única coisa boa que tinha era a hora da saída assinalada pelos toques alegres da sineta, quando marcavam o fim das aulas.
Em contrapartida, o toque da manhã, o da entrada e começo das aulas, tinha o sabor da prisão, do medo, do aperto no sítio do estômago, sobretudo nos dias chuvosos e escuros de inverno, aumentado pelo desconforto da sala, fria e húmida, e pelos cheiros a salitre e bafio das paredes, do barro molhado dos ladrilhos, do pó do giz penetrado pelo odor dos corpos das crianças que não viam banho e das roupas mal lavadas.
A caminho da escola, sempre a correr, ia-se acentuando em mim a angústia de não ter estudado a lição, de levar uma conta por fazer e um problema por acabar. Quantas reguadas e outros mimos da pedagogia de então estariam à minha espera?
– Dói aí no «M», não é? É onde mais dói quando está frio.
Dizia-me o Lenine (nome consentido anteriormente à implantação de Estado Novo) referindo-se aos vincos da palma da mão, ou “linhas da vida” que, na sequência de uma dúzia de reguadas, avivavam a cor rubra no meio do branco arroxeado das nossas mãos, sobretudo quando “engadanhadas” pelo gelo nas manhãs de Inverno.
O pai deste meu vizinho de carteira, um dos poucos alunos de pés calçados, ex-ferroviário, com cadastro na polícia política, dizia para quem quisesse ouvir que um dia não se continha e que, se mais alguma vez o filho lhe chegasse a casa com as frieiras dos dedos das mãos a sangrarem, rebentadas pelas reguadas daquela “besta”, era ele próprio que iria à escola e havia de ser mesmo ali na aula, em frente dos alunos, que o ensinaria a ser bom cristão.
O tempo passou e o pai do Lenine nunca nos deu esse prazer. Estávamos nos últimos e tristes episódios da Guerra Civil de Espanha e o nosso herói, uma noite, atravessou a fronteira a monte, foi juntar-se aos republicanos e não voltou a tempo de cumprir a promessa. Dizia-se que fora morto em combate, mas havia quem aventasse que fora passado pelas armas em Badajoz.
Era voz corrente entre os opositores ao regime do generalíssimo, que havia outros portugueses, acérrimos salazaristas, defensores da ideologia franquista, que iam ver os fuzilamentos dos “vermelhos” na praça de touros da vizinha cidade espanhola. A verdade é que nunca se chegou a saber qual foi a sorte do pai daquele meu condiscípulo.
Este nosso professor, é triste dizê-lo, foi a única pessoa a quem deixei de falar, de dar os bons dias, sequer. Sendo Évora uma cidade pequena, onde todos os dias as pessoas se cruzavam na rua, no jardim ou em qualquer outro lugar, ao passar por ele, eu virava, disfarçadamente, a cara e dizia para dentro de mim: «nunca mais me bates, grande filho da puta!».

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