Máscaras & Mascarados

Confesso, não foi o meu melhor momento.

Mas, enfim, 5 turmas de seguida rebentam com qualquer um. Quer dizer, antigamente rebentavam, agora explodem. E implodem connosco, porque quando um professor sai da escola está absolutamente morto para o mundo.

Eu sei, não serve de desculpa, mas, vejamos, a rotina mudou – não há correrias nos intervalos, não há sala de professores para partilhar mágoas, quando tenho de me cruzar com alguém respiro para o lado oposto, quando oiço tosse sinto fogo no rabo e fujo a toda a brida.

A máscara está tão colada à cara que há colegas com quem trabalho há anos e que quando nos cruzamos não os reconheço.

Depois as notícias vão ganhando entorno confuso – há um aluno infetado na turma B, na C e F também, o professor de FQ está em casa, bem como o de Português e Francês que são de risco. A coisa é tão caricata e inusitada que, na semana passada o delegado de saúde mandou uma turma e professores para casa na sexta-feira e sábado reenviou Mail a pedir desculpa que se tinha enganado. Portanto, segunda-feira, todos ala de regresso à escola e ninguém testa mais coisa nenhuma e calem-se bem caladinhos que a nossa escola ainda não apareceu no ranking das infetadas do país.

Portanto, convenhamos que uma pessoa se pode enganar. É normal.

Ainda para mais, olho para eles e só vejo olhos. Sentámo-los pela planta para ir tudo a eito, mas o 26 não vê o quadro e o 3 não se senta com o 4, e o 10 é par pedagógico do 28 desde o ano passado, e correu tudo muito bem, stora, mais o 16 que é vítima de bullying do 17 e, portanto, toca de reformular a planta toda da sala. E como não lhes sei os nomes, nem os consigo memorizar, é óbvio que as coisas acontecem, não é?

E começa logo tudo na chamada. A gente chamar, chama, mas não há memónica que funcione. Ana Flecha – máscara, olhos, presente!

Beatriz Carrilha – máscara, olhos, presente!

Carlos Teodósio – máscara, olhos, presente! E por aí adiante até ao final do alfabeto.

Também não há vindas ao quadro – Please, tell me your daily routines.

What teacher? Não te ouvimos aqui atrás!!

I SAID (apontando na direção precisa), CAN YOU, PLEASE, TELL US ABOUT YOUR DAILY ROUTINES?

Who, me?

No, you (apontando na direção precisa), please. You there, near the window (há 2 janelas). Not you, you there, yes, you, please, thank you. No, not you, your partner, what’s your number? Yes, number 22. CAN YOU, PLEASE, TELL US ABOUT YOUR DAILY ROUTINES?

Portanto, é isto. Passo as aulas a gritar, a tentar que responda um aluno que eu não sei exatamente quem é, nem de onde lhe sai a voz. E isto para conseguir ter alguma avaliação da oralidade. Enfim.

Portanto, dito isto, admito que nada serve de justificação, mas como atenuante para o meu enormíssimo erro.

Em poucas palavras: há um aluno que tem passado várias aulas a fazer ruídos impertinentes, e eu confesso que tive muita dificuldade em localizar os sucessivos “roncos”, dada a situação toda que já expliquei. Contudo, o meu lado Sherlock Holmes apanhou o perturbador finalmente e não hesitei em tomar as medidas devidas – falta disciplinar por arrotos repetidos e recado via on-line para a Encarregada de Educação. Confesso que não me poupei nas palavras, destilando a minha raiva e sofrimento naquele Mail – a educação recebe-se em casa, a escola é para aprender e exige um ambiente de respeito, o seu educando tem reiteradamente e de propósito perturbado as aulas com ruídos impróprios, blá, blá, blá….

No dia seguinte é-me solicitado que receba a Encarregada de Educação do perpetrador com urgência. Assim o fiz, confiante da minha implacável certeza. Comecei por explicar o sucedido, o comportamento impróprio da Santiago na sala, como isso causava perturbação e refletia uma atitude de má educação por parte do Santiago, etc, etc.

A senhora ouviu-me com toda a atenção, deixando-me dizer frase-por-frase sobre o Santiago.

Quando acabei de destilar o meu elevado desconforto proferiu sinteticamente:

  • Professora, agradeço toda a informação, mas o meu filho é o Salvador que está sentado ao lado do Santiago. Segundo o meu filho, foi o colega dele que fez tudo isso, não ele.

 

E, então, fez-se luz. Engoli em seco, pedi desculpa e reformulei nova acusação com a devida correção. Adenda para futuro: deixai-os lá arrotar à vontade que me estou bem a marimbar para a autoria.

Mas, afinal, somos todos humanos.

E mascarados somos todos, absolutamente todos, iguais.

 

Máscaras & mascarados (Diana Souza)

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6 comentários

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    • Marta on 17 de Outubro de 2020 at 16:08
    • Responder

    Muito bem!
    Realmente, com máscara somos todos iguais, seja ela de pano, seja ela como a tua.

    • Arroto on 17 de Outubro de 2020 at 16:19
    • Responder

    Ri bastante! 🙂

    • Zaratrusta on 17 de Outubro de 2020 at 16:26
    • Responder

    1. E é isto o coiso presencial.

    2. Para a DGS a definição de surto nas escolas tem vindo a alterar-se com o tempo. No início do ano letivo existia surto quando fossem identificados dois ou mais casos na escola. Há uma semanas, dois ou três casos já não constituíam um surto. Brevemente, para se considerar que existe um surto numa escola, será necessário que toda a comunidade escolar esteja infetada. Tudo feito à medida das conveniências do governo.

    3. Tudo feito com a conivência dos diretores.

    4. O sr. Costa, a sra. Graça e a sra. Temido, mandam 50 pessoas para dentro de um autocarro, 30 para uma sala de aula de 40 m2 e o problema está nas 5 que vão a passear na rua ao ar livre. Conversa de políticos aldrabões para um povo burro ouvir.

    5. 67% dos casos têm origem em ambiente familiar, dizem eles. Como se o vírus fosse de geração espontânea na residência de cada um.

    • Maria de Deus Lousa on 17 de Outubro de 2020 at 17:07
    • Responder

    É mesmo isso. Tal e qual. A voz tem de ser bem projetada. Já mudei a planta da sala 3 vezes por causa do A que não vê bem porque tem o B à frente e não os conhecíamos antes ou porque C é um cabeça no ar e tenho a esperança de que à frente esteja mais atento.
    Além de não sabermos de onde vem o som, (in) felizmente no 1 ciclo poucos usam máscara, descobri que fiquei um pouco surda. Dou por mim a tirar a máscara da minha orelha para ouvir melhor. Mais alguém faz isso sem se dar conta?
    E a humidade que se aloja na parte de dentro. No início usava uma de manhã e outra de tarde. Agora até me esqueço.
    É que há dias que é das 9h às 17h e 30min
    Nem sei que diga nem que faça

    • Alecrom on 17 de Outubro de 2020 at 19:14
    • Responder

    As ditaduras têm mesmo de controlar a informação.
    Ao que nós chegámos…

    • KT on 17 de Outubro de 2020 at 21:55
    • Responder

    E eu a pensar que estas coisas só me aconteciam a mim…

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