28 de Abril de 2024 archive

SOU APENAS HUMANO – Carlos Santos

Final da tarde, olhos marejados em milhares de lares, enquanto o país segue indiferente. A mãe vai-se embora… outra vez…
Não, a mãe não vai presa, embora pareça, porque, muitas vezes, vai exilada para longe da vista cumprir uma pena durante um ano e mais outro… até quando?
Talvez por pouco tempo, talvez para nunca mais voltar… ou para regressar um dia quando a casa for uma alcova vazia.
Cada vez mais tardiamente, o teatro do absurdo tornou-se a realidade de professores a conseguirem a tão desejada vaga na sua área de residência quando já ultrapassaram os sessenta anos de idade – muitos, já avós – e, outros, nos últimos dias de carreira a virem morrer na praia. Outros, nunca regressam…

O espelho, esse confidente que evitamos encarar, pergunta-nos diariamente «até quando conseguirás aguentar…?»

O que se sente quando do outro lado do telefone nos alvejam com a notícia de que a nossa esposa foi vítima de um acidente de viação em serviço, sabendo nós ser estatisticamente provável para quem já percorreu mais de meio milhão de quilómetros no alcatrão numa existência dedicada a esta profissão.
Que palavras temos para o espelho quando a morte nos veio visitar numa dessas tantas viagens a caminho da escola? Haverá palavras quando essa morte já nos rejeitou por mais do que uma ocasião, deixando-nos mazelas no corpo e sem dúvidas de que é do nosso elevado dever para com a nação cumprir o desígnio de nos mantermos vivos para não contribuirmos para o aumento da falta de professores.
Porém, bafejados por outra sorte, outros morreram nas estradas ou em casa com excesso de trabalho. E o que dizer de colegas com doenças graves, obrigados a cumprir o seu mui nobre dever para com a pátria, que foram enviados para as escolas, acabando por sucumbir longe das suas famílias sem oportunidade de se despedirem? Que vida esta tão cheia de benefícios irrecusáveis!
Até eu, suponho ter perdido por completo a razão insistindo nesta vida, de tal modo que já nem sei se o faço por amor, teimosia ou estupidez.
Contrariamente ao que muitos nos querem fazer crer, não somos missionários, porque temos família e vida própria. Mas, vendo bem, será que, no fundo, teremos uma vida? Será que, olhando para trás e para tudo e todos aqueles que sacrificámos, mesmo contra a vontade, não será esta uma estranha forma de vida dedicada de corpo e alma à profissão? Mesmo quem jure não o fazer, sabe que ninguém pode deixar por cumprir tanto trabalho e obrigações que nos são atiradas para cima.

Enfrentando o meu reflexo e as perguntas incómodas, vou me enganando convencendo-me de que «consigo e vou aguentar, porque vale a pena…» Será?
Podemos conseguir cumprir mais de 50 horas semanais (comprovado por estudos recentes), porque o trabalho tem sempre de ser feito e os alunos não podem ser prejudicados.
Podemos cumprir todas essas horas extraordinárias, sabendo que nenhuma delas será paga.
Podemos ir suportando as despesas desta vida ao volante, em casa ou em casa estranha, por não haver quem compreenda deverem ser comparticipadas.
Podemos não morrer de uma só vez de saudade daqueles que vamos deixando repetidamente ficar para trás, mas sabemos que algo dentro de nós vai morrendo aos poucos.
Podemos não perecer de fome pelo trabalho excessivo e desgastante, as despesas desajustadas e o baixo salário, mas vamos acumulando mágoa e revolta naquele amontoado de injustiça que vai do nosso coração até ao infinito.
Podemos até apreciar o carinho e gratidão de alguns alunos e pais, mas não chega para apagar o desgosto pelo número crescente dos que nos desrespeitam, ameaçam e batem.
De quem estamos nós, afinal, a esconder essa pesada culpa que carregamos há anos por aquilo que fizemos das nossas vidas e por tudo o que fomos deixando que nos fizessem?
Mas não nos culpem pelo fracasso crescente de uma sociedade sem valores nem responsabilidade e ingratidão que nutre pelos seus professores; por aqueles que fazem tudo o que mais ninguém faz; aqueles que saem da sua zona de conforto para ir para onde ninguém vai, para fazer aquilo que mais ninguém quer fazer.

Esse espelho, que tanto evitamos, lá está, olhando-nos até ao fundo da alma, revisitando-nos sempre com a mesma pergunta «até quando irás aguentar isto?». E nós, ingénuos, até quando iremos continuar a dizer numa voz sumida «eu serei capaz, porque vale a pena…»?
Não pensem que aguentamos tudo isto pela miserável remuneração que nos dão (repleta de despesas apensas).
Não nos exijam tanto em troca de tão pouco.
Não nos desrespeitem mais enquanto profissionais, mas, acima de tudo, enquanto pessoas.
Não nos peçam para calarmos a voz da indignação e o grito de revolta.
Não nos afrontem mais enquanto não calçarem os nossos sapatos e se fizerem a esta vida durante um dia, um ano, toda uma vida…
Não sou nem quero ser o vosso herói, porque esse vocábulo não põe pão na minha mesa nem apaga todos os desgostos e dor irreparáveis que causei a tantos que quero tanto e deixei ficar.
Não sou o culpado pelo repertório inesgotável do vosso fracasso enquanto sociedade, nem pela incúria de não fazerem o que é da vossa responsabilidade e me é imputado a mim.
Eu não sou despesa para todos os contribuintes num país que gasta do PIB metade do que se gasta na europa em Educação – sou um investimento no país e no futuro das novas gerações.
Não sou, de modo nenhum, um privilegiado por consagrar toda uma vida a dedicar-me aos vossos filhos, enquanto abandono os meus.
Sou gente como vós e é com o mesmo respeito que queria ser tratado.
Sem sonhos nem ilusões, olho aquela imagem que do outro lado do espelho tem guardado lágrimas desde sempre e, cansado desta luta sem fim, só peço que lá fora olhem para mim e me vejam… sou um professor… sou apenas humano.
Carlos Santos

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