Carta Aberta ao Primeiro Ministro

Carta aberta ao Senhor Primeiro-Ministro, Pedro Passos Coelho
Exmo. Sr. Primeiro-Ministro.


Não sei se lerá esta missiva. Por certo, os seus afazeres governativos o impedirão de prestar a mais básica e elementar atenção às linhas que aqui lhe deixo. Lamentarei por isso. Tanto mais que trabalho, semana após semana, bem mais que as quarenta horas que quer impor à minha classe, aos meus colegas, a quem dá tudo o que é humanamente possível para se fazer cumprir o mais alto desígnio da humanidade: a Educação. Ainda hoje, domingo, estive trabalhando todo o dia. Trabalhando em torno dos papéis e da burocracia que o senhor e o seu ministro prometeram combater. É claro que não devo ser piegas, pois certamente o senhor também prescindiu do contacto directo com os seus familiares para estar num canto de sua casa em torno de papéis.


Devo-lhe dizer que votei em si. Sim, eu fui um dos que acreditou nas suas palavras, no seu projecto. Hoje sou um dos milhares de desiludidos consigo e com a sua actuação. Vossa excelência optou pelo caminho do suposto cumprimento íntegro do acordo com o triunvirato internacional (expressão cara ao seu parceiro de coligação). Digo suposto, porque vossa excelência sabe que na Educação não tem sido assim.


Recordo-lhe, antes de mais, o que está escrito no famoso memorando: “Reduzir custos na área de educação, tendo em vista a poupança de 195 milhões de euros, através da racionalização da rede escolar criando agrupamentos escolares, diminuindo a necessidade de contratação de recursos humanos, centralizando os aprovisionamentos, e reduzindo e racionalizando as transferências para escolas privadas com contratos de associação.” Sublinho, em primeiro lugar, o valor monetário de 195 milhões de euros. Era esse o compromisso estabelecido internacionalmente. Quanto cortou o senhor e o seu governo? Só para 2012, o senhor previu um corte de 600 milhões de euros. O triplo, portanto, do que seria necessário em todo o programa de ajustamento. E para 2013? Na proposta do defunto orçamento de estado estavam estabelecidos cortes de 703 milhões de euros… Mas não falo mais de números, pois esses são certamente conhecidos por si e pelo seu genial ministro das finanças, mais do que por mim.


Mas… Se por um lado foi mais longe do que o estabelecido no memorando de entendimento, por outro lado ficou aquém. Onde estão os cortes no financiamento ao ensino particular, aos contratos de associação, senhor primeiro-ministro? Onde está o fim do esbanjamento de recursos de todos os portugueses em grupos económicos? Porquê continuar ilegalmente a financiar os lucros privados em colégios com contrato de associação, quando a poucos metros existem escolas públicas vazias? Não espero que me responda, pois qualquer tipo de resposta que me pudesse dar seria fugaz e superficial. Na Educação, qualquer resposta a qualquer questão deve ser aprofundada e reflectida. Nunca meramente tratada do mesmo modo como se introduzem valores e fórmulas numa qualquer folha de cálculo, vulgarmente conhecida por Excel.


Mudando um pouco o assunto, permita-me dizer-lhe que desgostou-me a sua intervenção acerca das greves dos professores. Este sentimento deve-se essencialmente ao facto de jamais esperar semelhante posição de si. Acusou toda uma classe profissional com o mesmo estilo, que tantas vezes criticou, do seu antecessor. Continuou a incendiar a opinião pública contra uma classe que deveria ser respeitada e acarinhada, pois é nela que reside o futuro e a esperança de um país melhor. Somos nós quem tem a missão de dar aquilo que, não tendo valor, é dos bens mais valiosos: o conhecimento. Não estamos a fazer dos nossos alunos reféns, muito pelo contrário. É pensando neles e no empobrecimento cultural que lhes parece querer impingir, que nos levantamos e nos erguemos.


Não lhe tomo muito mais tempo, porque provavelmente já escrevi demasiado e o senhor é um homem ocupado. Gostaria, contudo e se me for permitido, de lhe deixar um desafio: um debate entre a minha pessoa e vossa excelência, com projecção nacional, onde fosse permitida a discussão de factos e argumentos frente-a-frente. Eu bem sei que será possível, devido aos seus compromissos de agenda, mesmo que eu trabalhe bem mais do que as quarenta horas e não contabilizando as quatro horas diárias de deslocação entre a minha habitação (perdão, a dos meus pais) e a minha escola.


Para finalizar, gostaria de lhe dizer que mais importante do que não deixar qualquer encargo financeiro às gerações que nos seguem é não deixar-lhe uma dívida traduzida numa condição de ignorância e de miséria. O senhor, mais do que nas urnas, será um dia julgado pela História. Irremediavelmente, ficará conhecido por um dos coveiros culturais e educacionais de Portugal. Lamento que assim seja, quando noutras ocasiões tanto se orgulhou de ter sido professor.

Sem mais assunto, os meus mais cordiais cumprimentos.

 

Carlos Miguel Santos

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9 comentários

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    • Maria Inês Clímaco on 10 de Junho de 2013 at 13:19
    • Responder

    Palavras ditadas por um coração (como tantos outros) amargurado pelo caminho que os governantes querem impor a toda a sociedade, no âmbito da educação. Se não dissermos BASTA, iremos pagar muito caro esta nossa inércia. Obrigada, Carlos Miguel Santos por esta partilha!

    • Xana G. on 10 de Junho de 2013 at 13:23
    • Responder

    Obrigada, Carlos Miguel Santos! Bem-hajas, colega!


  1. Caro colega, tudo o que diz nesta ‘missiva’ é verdade, contudo fica muito por dizer. Comecei a trabalhar precisa/ nesta ‘missão’ em 81;Sempre dei muito mais tempo a trabalhar, sem contabilizar, para lá do horário q. me fora atribuido. O congelamento da carreira, para mim, já ultrapassou 9 A.Cortes dos subsidios, no ordenado… Deslocações a fazer-me ficar fora de casa tb já tive.Tdo este ‘filme’ dura há anos.Se não for agora feito o q. se está a planear…continuaremos até tombar para o lado.
    Atentamente,
    Ana

    • Alipio PrataQuaresma on 10 de Junho de 2013 at 17:54
    • Responder

    Força Professores! Sejam unidos, para defesa do que é justo e para bem das gerações vindouras! Obrigado.


  2. Caro Carlos Miguel,

    cada frase escrita, cada palavra sua vieram de encontro ao que penso, ao que sinto, mas que por vezes fica por dizer porque já são tantas desilusões nesta profissão que as mesmas se perdem pela meio da vida.

    Disse tudo o que eu gostaria de ter dito e com certeza toda a nossa classe profissional.

    Obrigada.

    • antónio on 10 de Junho de 2013 at 19:52
    • Responder

    Parece claro que a Escola Pública e a Educação, em geral, são alvos preferenciais da horda que compõe o executivo governamental.
    Nuno Crato está feliz e contente a reviver os gloriosos momentos da juventude contestatária e ação reacionária quando fazia parte da Juventude Maoista e do PCP.
    Nunca se tinha sentido tão realizado como orientar a sua própria guerrinha contra os professores, classe esta que lhe exigia demais para as suas capacidades intelectuais.
    Os seus neurónios nunca tiveram capacidade para se igualarem aos professores. Daí este recalcamento psicológico que o foi corroendo, até eclodir num ódio igualmente irracional – qual participação pelas fileiras do PCP e pela direção da UEC.

    • paula on 10 de Junho de 2013 at 22:20
    • Responder

    O premiar da incompetência e do compadrio

    No dia de Portugal, o Presidente da República condecorou o João Proença da UGT e João Dias da Silva da FNE pelos favores prestados aos sucessivos governos, em concertação social, em detrimento dos direitos dos trabalhadores portugueses, incluindo-se nestes os professores.

    Os professores estão, agora, certos que estão sós na luta pelos seus direitos. A estrutura sindical que deveria defender a Escola Pública e os direitos dos docentes é aquela que os vende ao poder instituído. Parece claro a razão pela qual a FNE se afastou das greves às avaliações. Foi o suficiente para fragilizar a luta que os professores estão a desenvolver e dar um novo fôlego ao executivo, que se preparava para esgotar os argumentos para manter o Nuno Crato, sendo obrigado a demiti-lo.

    Os docentes estão agora esclarecidos sobre o papel da UGT/FNE que deveria ser de luta pelos direitos dos docentes e o futuro de uma Escola Pública de qualidade e gratuita, sem qualquer tipo de pressão, onde a democracia seja respirada e sentida em cada recanto das nossas escolas e as nossas crianças sejam educadas com o máximo de serenidade e condições.

    Deixem de ser sindicalizados da FNE. Para quê pagar quotas, quando os sindicatos da FNE não defendem os professores.

    • Maria Silva on 10 de Junho de 2013 at 23:20
    • Responder

    Sábias palavras! Demonstram grande lucidez.

    • Maria on 12 de Junho de 2013 at 1:45
    • Responder

    Obrigada, Carlos Miguel Santos. Não podemos desistir, Carlos. Vamos conseguir alterar este rumo da educação. Felizmente temos este espaço para partilhar ideia e discutir soluções.

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