Mãe s

Das primeiras vezes estranhei que desviasse o assunto. A palavra era incómoda e densa como o chumbo. Muito provavelmente, coisas de adolescente, pensei. Contudo, com o passar do tempo e a ausência sempre presente daquela encarregada de educação, vi-me obrigada a aprofundar o tema.

Foi, então, que percebi que a ignorância é uma benção que raramente nas escolas temos o privilégio de usufruir. A dado momento, compreendi que tinha aberto a porta de algo visceralmente horrível e tenebroso. A Maria não se mutilava para dar nas vistas. A Maria cortava as pernas e os braços porque era a única forma de fugir da mãe. A mãe que lhe deu vida, a criou e, agora, lhe suga cada sopro de alento, devagarinho, como se se deliciasse com a visão cadavérica que os olhos cinzentos da filha projetam cada dia que passa.

Imediatamente me lembrei de S., minha querida amiga que, escolhendo não ser mãe biológica,  se tornou mãe adotiva de um outro, tão seu filho agora que do cabelo lhe roubou as madeixas de ouro, pedindo o queixo emprestado a um pai que é hoje exclusivamente seu.

Lembrei-me deste trio que se uniu há dois anos. Pensei que ela era louca, uma criança pequena nossa dá tanto trabalho, quanto mais uma que vem de fora, os dez anos a botar corpo e incertezas e medos que vêm de quartos obscuros, desvinculada do tempo e dos afetos.

Mas não, S. não estava enganada. O miúdo nasceu para ser seu filho. A persistência, o carinho, a dedicação transformaram todo aquele amontoado caótico de criança num garoto cada vez mais tranquilo que, contra todas as expetativas, começou, finalmente, a pintar o sonho com a mesma musicalidade de quem inventa uma melodia na guitarra. Transformaram, não. Transformam todos os dias num dia novo, polido, desejado.4

Não contente com isso, o trio decidiu adotar mais um menino, o Daniel, que reside na mesma instituição do primeiro. Um gaiato pequenote, mas energético e cheio de ideias na cabeça que, tenho a certeza, um dia vão virar este mundo do avesso e torná-lo bem melhor.

O Daniel, porém, ainda tem uma mãe biológica que se agarra a ele, não desistindo de o sugar a cada telefonema e a cada promessa desfeita. Jura que o padrasto será bom desta vez, que tudo irá correr bem, promete prendas, mimos e visitas. Isto tudo apesar de ele ser um entre três outros filhos espalhados por instituições, frutos de relações sucessivas, lares desfeitos, violência, polícia e tribunal. Todos eles conseguiram ser adotados rapidamente e floresceram em vidas novas, merecidas. O Daniel, por ser o mais novo, subsiste. Ele, que todos os dias reza pela família que deseja e não pela que tem, emaranhado numa teia de burocracias e papeladas.

“Desta vez”, diz-me S. com os olhos faiscando esperanças, “sinto que o tribunal vai decidir a nosso favor”.  Já lá vão muitos meses de justiça complicada, triplicada, com relatórios, pareceres, opiniões sustentadas, imbróglios legalistas que penduram a vida do Daniel numa corda, a secar, à espera de decisões que somam decisões, à espera que sejam ouvidos técnicos, pais e demais. Nisto passam-se anos de uma justiça que não se compadece com crianças crescendo no fio da navalha.

A S. está, durante todo este tempo, grávida de um filho que não lhe foi dado, ainda, para ser seu. Mesmo assim, contra todas as hipóteses, contra todos os juízes, técnicos e papéis, espera. Contra tudo e contra todos, o seu amor é tão vasto e indizível que esperará pelo Daniel com a mesma ternura com que, aqui à minha frente, dá um abraço apertado a este seu primeiro filho.

Penso novamente em Maria. No sofrimento que sentirá por ser filha de mãe indesejada. Na estranha dor de alívio que cada corte lhe causa para esquecer esse outro tormento que é a sua vida quotidiana com uma mulher doente que, definitivamente, não nasceu para ser sua mãe. Enquanto preencho os papéis que a entregarão nos braços da justiça, desejo apenas que o seu caminho se aligeire e descubra, um dia, o que é verdadeiramente o amor.

Num mundo onde o sofrimento paira quotidianamente sobre nós, era bom descobrir que a justiça, o estado, todos nós conseguimos, de facto, ver as crianças, ampará-las e oferecer-lhes um célere caminho, realmente melhor. Um mundo onde a palavra mãe seja, exatamente, aquilo que quer dizer.

 

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5 comentários

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    • gorete on 2 de Maio de 2015 at 23:06
    • Responder

    Mas quem escreveu isto?
    É lindo demais para estar escrito apenas aqui…..

      • karina on 3 de Maio de 2015 at 14:34
      • Responder

      Quem escreveu foi a Diana Souza, contratada há 18 anos (fim da página), para não ficar só aqui é só compartilhar…

    • jasmine on 3 de Maio de 2015 at 14:48
    • Responder

    É um texto bonito, sem dúvida.
    Ser filho indesejado deve ser uma dor sem fim.

    • ana pinto on 3 de Maio de 2015 at 16:22
    • Responder

    As mães q adotam são mt corajosas. Merecem, sem dúvida este tributo

    1. Um tributo às mãe que adotam e a todas as mães que o sabem SER!
      Obrigado à Diana. Um beijo especial da pcris…

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