Há pensamentos que não morrem, apenas hibernam…
Todo o pensamento doutrinal que defende os contratos de associação, o cheque-ensino e a entrega de parte do ensino ao setor privado, baseia-se na falácia da má qualidade da escola pública. E sempre que se publica e se dá eco às perversas listas de ordenação qualitativas das escolas, tem um único objetivo.
Pois, não me venham falar de rankigs das escolas, nas quais, sem surpresa, as privadas estão no topo. Isto, porque os estudos se baseiam numa falsa ideia de igualdade na amostra que, na realidade, não existe, pois, o universo de alunos do público e do privado não é o mesmo, visto este último não aceita qualquer um. E esse conceito falseado que desacredita a escola pública só passa, porque demasiados comentadores a propagandeiam até à exaustão.
O que sabem muitos desses críticos sobre a escola pública se estudaram sempre em colégios privados?
Se o ensino público não tem falta de oferta de instalações escolares (até tem em excesso) e tem o mesmo universo de professores disponíveis que o setor privado, qual o motivo desta vontade voraz de o entregar a particulares?
E, francamente, sabendo-se que o setor da Educação movimenta mais verbas que o setor automóvel, entende-se de onde vem essa vontade.
Estrutura-se toda uma política assente na retórica dos rankings fazendo crer que a escola privada é de excelência e a pública, medíocre, para convencer a opinião pública a aceitar a entrega de uma boa fatia do ensino público ao lucrativo negócio do setor particular. Um negócio que beneficia uma elite, pago com os impostos descontados por todos nós, revela-se ofensivo.
Este desconsiderar do magnífico trabalho que os professores fazem em escolas em zonas isoladas ou problemáticas, evitando que se destrua o futuro de muitas crianças que a o particular rejeita, é insultuoso.
A escola pública é a única que assegura que nenhuma criança seja marginalizada nem deixada para trás; que permite que todos possam ter igualdade no acesso à educação; que recebe todos, independentemente da sua origem, do seu estatuto social ou condição financeira; é aquela que, funcionando como elevador social, possibilita retirar muitas crianças da pobreza dando-lhes a oportunidade de realizarem o sonho de poderem ter uma vida digna; que permite que, também elas, possam ter direito de serem felizes.
Eu sei que existe quem não entenda o que isto significa.
Sei que, esses tais, acreditam que terá sempre de haver os desfavorecidos para trabalhar para os filhos de quem mais tem e que, – com base nessa devastadora ideologia neoliberal de uma economia selvagem –, ainda tenham de agradecer e prestar vassalagem a quem lhes dá emprego (independentemente dos patrões os explorarem ou, eventualmente, optarem por pagar os seus impostos em paraísos fiscais).
Bem sei que ainda há uma visão delirante que só aceita um mundo no qual o acesso a certos bens e serviços não deva estar alcançável para todos, mas seja um exclusivo para quem pode (pagar).
Sei, perfeitamente, que muitos nunca aceitaram o 25 de Abril e a democratização do acesso ao ensino que possibilita à plebe rivalizar com as elites económicas e sociais.
Sei muito bem dessa ideia repugnante, que já escutei da boca desses monstros – que, nestes ciclos de febre neoliberalista, saem detrás das pedras para dizer barbaridades –, de que tudo gira à volta da seleção natural, na qual os menos capazes devem ser excluídos; de que, aqueles que estão em dificuldades, não são vítimas, mas uns fracassados na vida por não terem conseguido sustentar-se a si nem aos seus.
Sei, porque esse discurso de há uma década, de gente que venera unicamente o dinheiro, está de regresso e vai-se escutando de modo mais ou menos dissimulado em toda a parte onde existe uma dessas criaturas com uma boca falante com direito a tempo de antena sem confronto com o contraditório.
Eu sei do que falo, porque estudei muitas vezes só com fotocópias, andei debaixo de chuva, sol e neve às boleias na beira da estrada sujeitando-me a caminhar quilómetros para chegar a uma escola pública e conheci o sabor da fome e da privação para hoje ter o direito de exercer a profissão que escolhi.
Eu sei que foi um caminho difícil, mas, mesmo assim, bem melhor do que uma realidade que marcou a vida dos meus pais e avós, a quem lhes foi negada a oportunidade de poderem estudar ou prosseguir os estudos além da «4ª classe» (uma realidade que muitos saudosistas e muitos inconscientes se esqueceram ou desconhecem).
Eu sei que, mesmo na atualidade, com os enormes avanços que houve, estando ainda longe de ser um sistema perfeito, este permitiu que muitos saíssem da pobreza, se tornassem elementos válidos para a sociedade e se sentissem próximos da tão desejada igualdade de oportunidades.
Sei do que falo, porque muitos dos meus alunos não chegam à escola de viatura com motorista, porque ainda passam por muitas dificuldades pelas quais eu também passei.
Sei da vital importância desta escola de acesso livre quando, mais tarde, revejo alguns dos meus alunos – os quais a sociedade dava como perdidos –, encontrando-os bem na vida e felizes.
Eu sei, porque a escola pública não rejeita alunos carenciados, com deficiências, com necessidades educativas especiais, dificuldades de aprendizagem, económicas, minorias, cadastrados, problemáticos, marginalizados, rejeitados ou violentados pela vida. Eu sei, porque, todos estes, que os colégios particulares deixam à porta, têm as portas abertas nas instituições de ensino estatal com docentes empenhados em salvá-los e em dar-lhes uma oportunidade.
Assim, para essas instituições de ensino que seletivamente escolhem os seus alunos, é fácil apresentar resultados escolares acima da maioria daquelas que trabalham com todos, sem discriminação.
Eu e muitos dos professores que estão nos estabelecimentos de ensino estatal, sabemos de tudo isto, porque estamos lá a dar o nosso melhor para oferecer uma oportunidade a todos aqueles que os colégios privados rejeitam para lhes permitir, deste modo, estarem no topo dos rankings das escolas de que tanto se vangloriam.
Eu sei, porque, “alguns dos piores [professores] das gerações do presente”* que estão nas escolas públicas portuguesas, dão mais do lhes é exigido, sacrificando-se diariamente para que as nossas crianças e jovens possam ter acesso a um direito básico inscrito na Carta universal dos direitos humanos e dos direitos das crianças.
Carlos Santos
*Homem Cristo, Alexandre. In: jornal Observador, 11-8-2014