NAQUELE DIA… Carlos Santos

 

Ao entardecer, a noite que os esperava atrás da colina, ainda deixa entrar na sala de professores os últimos raios que vão partindo em fuga pelo soalho gasto em direção à janela.

O silêncio é interrompido por palavras inconfessáveisque, em lugar de saírem da boca, abandonam o coração rompendo aquela quietude nervosa.

Quando nos reformarmos, deixaremos aqui muitos amigos – lembrou Manuel.

Quando formos, já só restará pouca vida para viver – lamentou Ana.

Jamais irei esquecer tantos momentos bons. Iremos para a reforma e seremos lembrados – esperançou Maria.

Iremos para a aposentação e, logo, nos esquecerão – desfez José.

Quando formos jubilados faremos muita falta – afiançou Dolores.

Não, ao nos reformarmos, só então nos daremos conta de que, afinal, durante todos estes anos, aos olhos daquelas pessoas, não fomos mais do que um simples número – chorou Alice, desalentada.

Nesse dia, seremos a alegria de tantos que há tanto esperam pela vaga que iremos deixar aberta – lembrou Maria.

Será a vez deles que, infelizmente, terão uma vida ainda mais difícil do que a nossa – recordou Teresa.

De entre tanta gente envelhecida, alguém que aparenta ter dado menos voltas ao sol, dirige-lhes um olhar furtivo e é logo interpelado por Isabel, cujo rosto lavrado pela vida e o cabelo orgulhosamente riscado de branco não esconde os seus 66 anos, 44 dedicados a ensinar. – É uma questão de tempo. – Sorriu. – Muito em breve sereis vós quem estará no nosso lugar. É tão inevitável como o dia ceder o lugar à noite. Nas escolas, já quase ninguém é novo e todos partilhamos falsas esperanças, vontades cansadas, sonhos mortos e ilusões desfeitas.

Quando me despedir da escola – retomou Teresa –, esvaziarei o meu cacifo e, na minha caixa, levarei comigo arrependimentos, alegrias, fadiga, lembranças, deceção, saudade e toda um fardel de emoções com as quais não irei saber lidar. Irei ter tempo de sobra para lamber as feridas, para acreditar ter sido importante na vida de alguém que passou pela minha sala de aula, mas, sobretudo, para recuperar muito do tempo que me foi roubado para poder pensar em mim.

(transcorreu um silêncio impenetrável)

Quando atravessar aquele portão pela última vez, não quero ser lembrado, nem homenageado; só quero ter a certeza de que, tudo o que fiz, foi o melhor que pude e de que, tudo o que dei, terá valido a pena – pensaram todos, mas nenhum teve a coragem de o dizer.

Carlos Santos

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3 comentários

    • Duarte Gomes on 27 de Janeiro de 2024 at 15:57
    • Responder

    Uma moda de há uns anos para cá, é os alunos deixarem de nos falar assim que deixamos de ser professores deles. Dantes era um ou outro, agora são TODOS.

    Sempre houve hostilidade. Agora há ódio.

    Não se iludam: professor é bode expiatório, saco de pancada, palhaço e objecto de desdém universal.

    Com a concepção oficial da teoria da treta do do professor opressor X alunos oprimido, e após o governo de Sócrates, Milu, Lemos, Pedreira, Costa, tudo piorou dramaticamente.

    O governo sabe que hostilizar os professores rende muitos votos.

    No auge desse governo cheguei a ter casos de fazer uma pergunta curricular, em situação normal de sala de aula, e o aluno responder: “O meu pai é que paga o seu ordenado “.

    Não alimento qualquer ilusão nem sinto qualquer desapontamento. Como prostituta que sou, não me sinto obrigado a amar o meu cliente. Faço o meu trabalho ocasionalmente sofro agressões físicas e verbais, sou desprezado, e nisso consiste a minha profissão.

    Ninguém me mandou escolher esta profissão. Não espero reconhecimento nem tal seria realista. É o meu ganha-pão. É honesto. Não sou nenhum traficante, gatuno, proxeneta ou político.

      • Ops. Agora já disse. on 27 de Janeiro de 2024 at 18:48
      • Responder

      Tiques que lhes foram impostos por gente sem escrúpulos (pais, políticos ou outros professores que pensam que são mais do que os restantes).
      É a sociedade reles que temos.
      E vai piores, porque os reles mandam cada vez mais, de ano para ano.
      Na Educação, desde 2005 que é cada vez mais assim.

    • Ops. Agora já disse. on 27 de Janeiro de 2024 at 18:46
    • Responder

    A maior hostilidade é provocada por um certo número de pseudo-professores que nada mais são do que chicos-espertos a fingir que são professores.
    São uns quantos figurões que se arrogam sabichões e maltratam os alunos e outros professores, excluindo todos os que não são como eles.
    São aqueles que põem logo de lado os alunos, em vez de se aproximarem deles para os recuperarem. Esses não passam de biltres, que fingem ser professores e nada mais são do que autênticos falsários.

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