Francamente, não sei o que me irrita mais:
– Se a ânsia de impor a discriminação, supostamente positiva, de alguma Esquerda, pretensamente muito tolerante, muito “cool” e democrática, mas que, previsivelmente, acabará por resultar no mais ignóbil desrespeito pela privacidade e intimidade de crianças ou de jovens;
– Ou a histeria de alguma Direita empedernida, que parece acreditar que os bebés não nascem de relações sexuais ou que parece acreditar que a biologia é uma verdade inquestionável ou que parece querer ignorar ou negar a existência de famílias e de figuras parentais, cujos valores defendidos são absolutamente castradores e redutores, sempre que esteja em causa, ou em discussão, qualquer assunto de natureza sexual que envolva crianças e jovens…
Já agora, aproveita-se para recordar a essa Direita empedernida que a sexualidade é parte intrínseca de qualquer ser humano e que dificilmente existirão pais e mães como seres assexuados e assexuais…Segundo consta, apenas os Anjos não terão sexo, apesar de essa crença também nem sempre ser muito consensual…
E, ainda, se recorda que a biologia não é uma verdade inquestionável, pelo menos quando se trata de orientação sexual ou de identidade de género…
E tudo isto vem a propósito da algazarra suscitada pela recente aprovação, em Assembleia da República, do Projecto de Lei nº 332/XV, da autoria do Partido Socialista, versando sobre o direito de crianças e jovens à autodeterminação da identidade de género em contexto escolar…
O referido Projecto de Lei refere expressamente o seguinte no Artigo 4.º, Números 1 e 2, denominado “Mecanismos de deteção e intervenção”:
“1 – As escolas devem definir canais de comunicação e deteção, identificando o responsável ou responsáveis na escola a quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde à identidade de género à nascença.”
“2 – A escola, após ter conhecimento da situação prevista no número anterior ou quando a observe em ambiente escolar, deve, em articulação com os pais, encarregados de educação ou com os representantes legais, promover a avaliação da situação, com o objetivo de reunir toda a informação e identificar necessidades organizativas e formas possíveis de atuação, a fim de garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável da criança ou jovem.”
A Comunicação Social, e em particular as Associações de Directores de Agrupamentos de Escolas, parecem ter resumido este Projecto de Lei às dificuldades de execução de casas de banho e de balneários neutros, em particular aos custos de eventuais obras de reestruturação…
Mas não creio que o seu principal problema seja esse…
Afligem-me e causam-me perplexidade, sobretudo, as expressões “deteção” e “quando a observe em ambiente escolar”, o que, na prática, poderá traduzir-se por uma espécie de “caça às bruxas”, ou seja, poderá traduzir-se na procura e na detecção das características sexuais de crianças e jovens que não correspondam à identidade de género com que nasceram, mesmo que os próprios não as queiram assumir…
Confesso que estou mesmo a ver, em algumas escolas, a criação de putativas “brigadas”, “especialistas” em detectar características sexuais de crianças e jovens que não correspondam à identidade de género com que nasceram…
Aberrante será o mínimo que se poderá afirmar deste Projecto de Lei que, se for homologado pelo Presidente da República, bem poderá vir a evidenciar os efeitos mais perversos de uma discriminação, supostamente, positiva…
E o suposto direito de “autodeterminação da identidade de género em contexto escolar” poderá acabar por se transformar na obrigatoriedade de expressar determinadas sexualidades, imposta em termos legais, eventualmente, até, contra a vontade das próprias crianças e jovens…
Impor discriminação positiva pode dar nisso…
Deixem as crianças e os jovens em paz… Até hoje, eles nunca precisaram de leis, muito menos de leis absurdas, para se expressarem…
Expressam-se apenas.
Assim haja quem os queira ouvir.
Além do mais, já existe enquadramento legal relativo ao respeito pela orientação sexual e pela identidade de género, que se encontra devidamente salvaguardado no Estatuto do Aluno, em particular no seu Artigo 7.º, bastará que as escolas cumpram tal legislação:
“Direitos do aluno 1 — O aluno tem direito a: a) Ser tratado com respeito e correção por qualquer membro da comunidade educativa, não podendo, em caso algum, ser discriminado em razão da origem étnica, saúde, sexo, orientação sexual, idade, identidade de género, condição económica, cultural ou social ou convicções políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas;”
Espero, sinceramente, que o Presidente da República vete o Projeto de Lei nº 332/XV, uma potencial palermice, sobretudo pela sua inutilidade e por, no limite, se poder transformar na mais hedionda forma de discriminação e num atentado à reserva da intimidade e da privacidade…
A Esquerda, pretensamente, muito tolerante, muito “cool” e democrática e a Direita empedernida, no caso presente em confronto extremado de posições, na verdade, não visarão garantir o bem-estar e o desenvolvimento saudável das crianças e jovens, pretenderão antes utilizar as crianças e os jovens como “armas de arremesso”, quase como instrumentos de Poder, através dos quais tentarão impor as respectivas ideologias…
E isso não é zelar pelo superior interesse das crianças e dos jovens, isso é egoísmo exacerbado, que resultará numa tentativa de manipulação de crianças e de jovens, encapotada de legalidade para essa Esquerda e de parentalidade para essa Direita…
As crianças e os jovens não podem ser utilizados como meros instrumentos ideológicos, de Esquerda ou de Direita…
(Enquanto Psicóloga, não vejo qualquer vantagem para as crianças e jovens, decorrente das pretensões do Partido Socialista veiculadas pelo Projecto de Lei nº 332/XV).
Paula Dias