Estamos no tempo da escolaridade obrigatória (EO) de longa duração. Obrigatória para garantir o direito de todos à educação. De todos, ao longo da vida, desde o berço até à cova. Estamos no tempo da inclusão, plasmada na lei, que não permite deixar ninguém para trás: NO CHILD LEFT BEHIND. Estas são as orientações das organizações mundiais que Portugal subscreveu.
Não sei se podemos reinventar a escola “ex novo” de acordo com o atual paradigma. A verdade é que estamos a tentar construir um novo edifício sobre as ruínas e alicerces de uma construção antiga, com as mesmas paredes e uma história enraizada em dogmas e práticas obsoletas.
Chumbar os alunos hoje é crime, é incumprimento da lei, das orientações da ONU e das suas agências. O governo e o ministério da educação (ME) ainda não souberam encontrar as respostas adequadas para cumprir a lei, nem deram às escolas os meios para se organizarem nesse sentido, nem formaram os professores para seguir as novas orientações, nem lhes deram as condições mínimas para poderem compreender e executar este plano de ação. As escolas e os professores chumbam os alunos, deixam-nos para trás, porque não aprenderam a educar cada um de acordo com o seu perfil. O desinvestimento na formação de professores, que se agravou com o aumento da população escolar, obrigou a recrutar em massa professores sem as devidas habilitações. A profissão docente não teve as respostas adequadas e desceu vários níveis. O ensino obrigatório está mergulhado no caos e sem horizontes para progredir. Continuamos no caminho do empobrecimento.
A velha Universidade de Coimbra, onde nasceram e de onde irradiaram o ensino “ex cathedra”, o “magister dixit”, a “lição”, que contagiaram todos os níveis de educação, está num processo de mudança que visa repensar as modalidades e estratégias de aprendizagem e investigação adaptadas aos meios e objetivos do mundo atual. A Reitoria incentiva a mudança e as várias faculdades e centros de investigação apostam em projetos inovadores em linha com o que de melhor se faz nos países mais avançados. Vejo do mesmo modo os departamentos do Instituo Politécnico num notável processo de emancipação para se nivelarem por cima, nas suas áreas de formação e investigação, com o que de melhor se faz nas universidades. Está em marcha o caminho da confiança e do prestígio. O ensino superior “mexe” e bem porque tem conhecimento, iniciativa e autonomia para responder a novas exigências, apesar da escassez de orçamentos e de recursos. Porque é que a EO não “mexe” como o ensino superior?
Há escolas do ensino básico e secundário, públicas e privadas, alinhadas com as orientações das organizações internacionais, mas, infelizmente, são ainda uma exceção. A matriz enraizada nas mentalidades de muitos pais, professores e alunos, e imposta pelo ME, é a matriz da competição, da seleção e da exclusão, com níveis de desperdício únicos na europa. A lógica de organização é a do pescador que lança a rede, captura o peixe grosso e lança ao mar o peixe miúdo, excluindo anualmente milhares de alunos na EO, outros tantos impedidos de entrar no superior por incapacidade financeira e outros ainda que emigram para países mais atrativos depois de concluírem mestrados e doutoramentos.
Michel Foucault (Surveiller et punir, Gallimard, 1993) investiga a origem da prisão, digna sucessora da masmorra, da fogueira e da guilhotina, e situa-a num espaço de modernização a partir do século XVI. A prisão deixa de ser um instrumento de penalização dos crimes para ser um espaço de reabilitação dos delinquentes de modo a torná-los dóceis e úteis, e alarga esta orientação humanitária às escolas e colégios, forças armadas e igreja. A estratégia comum para a docilidade era vigiar, controlar, castigar, submetendo a exercícios, notações, classificações e exames. No serviço militar, o corpo cansado fica mais submisso, na escola, o exercício deixa menos espaço para a indisciplina e o barulho. A régua e a palmatória são de uso corrente, o programa único e os exames asseguram a submissão e a docilidade e no fim do ano os “bons” passam e os “maus” chumbam. A igreja, sempre presente, mantém viva a dicotomia entre a virtude e o pecado e ameaça com o inferno quem não mereça o paraíso. Tudo isto é o retrato do passado? Ou permanece a mentalidade de que o papel da escola é selecionar os “bons” e eliminar os “maus”? Onde fica aqui a inclusão?
A meritocracia domina a organização dos sistemas de ensino. O mérito é um valor respeitável quando traduz trabalho, dedicação, disciplina, inteligência, talento, honestidade como atributos da pessoa. Michael Sandel publicou em 2020 A Tirania do Mérito (The tyranny of merit: what’s become the common good? New York: Farrar, Straus and Giroux), onde sustenta que não podemos avaliar o mérito da pessoa sem ponderar os meios de que dispõe, ou seja, muitas pessoas podem ter todo o mérito, talento e qualidades pessoais, mas não têm os meios indispensáveis para desabrochar. Os ricos dispõem de todos os meios, os pobres não têm acesso ao próprio mérito. Uma criança sem livros, sem computador, sem internet, exposta a todas as desigualdades e injustiças não tem espaço para o mérito; um jovem pode ter todo o mérito para os mais altos voos no ensino superior, mas não tem capacidade financeira para o frequentar. O mérito não é apenas um atributo da pessoa, é também o resultado das suas circunstâncias. A inclusão será compatível com a tirania do mérito?
Diário as beiras 2023.05.18