Tu não vais acreditar. Coisas do arco da velha que até parecem invenção, mas não, pura realidade. Eu conto.
O Chão da Vã é uma aldeia ribeirinha que existe mesmo, com este nome esquisito, tem código postal e tudo, para não pensares que invento: Chão da Vã 6000-540 Juncal do Campo, Castelo Branco. Os cinco pintainhos à volta da galinha, adivinha, eram cinco crianças em frente de uma regente escolar, todas sentadas em tropeços de cortiça, bem juntinhas, coladinhas, por razões que adiante se verão.
Não sei se sabes o que era uma regente escolar, mas hoje, com a crise que aí vai, é fácil de explicar. Naquele tempo, meados do século passado, nem havia professores que chegassem, nem Salazar queria que houvesse. As crianças, pensava ele, sufocavam as Finanças. O que é que o homem fez? Fechou as Escolas do Magistério, que formavam os professores, e criou a classe das regentes escolares, muito mais baratinhas, nem precisavam de ter a 4ª classe, bastava que fossem pessoas de bem, boa conduta, e que transmitissem fielmente a imagem do regime, a União Nacional. Meninas, às vezes ainda adolescentes, que não queriam trabalhar no campo, que canseira, aceitavam ser regentes em troca de um salário de 300 escudos só nos meses que trabalhavam, um euro e meio na moeda atual. Como vês, professora, professor, o problema não é novo. As nossas crianças continuam um grande estorvo para as Finanças.
Um dia, o Senhor Inspetor Escolar, naquele tempo dobrava-se a língua, contou um episódio verdadeiro que não vais acreditar. Eu ia almoçar com alguma frequência a casa do Senhor Inspetor, o pai do meu melhor amigo nessa época. E contou ao almoço a história mais estapafúrdia que ouvi em termos de pedagogia pura, vivida, ali, no terreno. Foi ao Chão da Vã visitar o Posto Escolar, com a regente em plena sessão de trabalho, muito concentrada, crianças muito atentas. Todas foram lendo, uma após outra, para o Senhor Inspetor ver a qualidade do trabalho desenvolvido. E liam mesmo.
Pequeno pormenor: só havia um livro de leitura, que a regente abria no regaço, voltado para ela, e as crianças do outro lado aprendiam a ler com o livro ao contrário. Professoras de hoje, atentai, aposto que os vossos alunos não têm esta habilidade adquirida de ler de pernas para o ar. A boa pedagogia tem contornos inimagináveis. Mas também, o que é que isso interessa, ler podem ler ao contrário, o que não podem é desatinar com a linha do regime.
Salazar tinha coisas que hoje não lembrariam nem ao diabo. O homem deve ter aprendido as primeiras letras com uma regente escolar e por isso, em vez de ler que as Finanças sufocam as crianças, lia que as crianças sufocam as Finanças. Teimava em ler o livro ao contrário.
Passou por aí um ministro que tinha uma ideia estrambólica: não adianta ensinar bem um chorrilho de asneiras e barbaridades. Punha o foco mais naquilo que se ensina e menos na maneira como se ensina. No fundo, é a linha dos adeptos do eduquês, que defenderão que a regente do Chão da Vã ensinou o que devia, as crianças aprenderam a ler bem, o modo pouco importa. As crianças são livres de ler como sabem. Se as línguas semíticas, como o árabe e o hebraico, se leem da direita para a esquerda, ao contrário das línguas românicas e outras, pode dar jeito ler com o livro ao contrário. Imaginem que os futuros jovens que aprenderam a ler com o livro ao contrário são colocados nas Finanças em Castelo Branco. Os contribuintes chegam e poisam os seus documentos em cima do balcão. Nenhum problema: a leitura é igualmente acessível ao cliente, que lê de frente, e ao funcionário, que lê ao contrário. Aqui se vê que o mundo é perfeito. Mas fica-me uma desconfiança: acho que o governo e os professores atuais também não aprenderam a ler da mesma maneira, não sei se aprenderam de pernas para o ar, mas de certeza que uns aprenderam da direita para a esquerda e outros da esquerda para a direita. Com outro problema: muitos só aprenderam a ler o que está na cartilha. Herança trágica.
Fiquei ligado ao Chão da Vã, não apenas por esta lição de pedagogia, mas por uma lição de vida, hoje muito atual, em que um “regente” de engenharia foi chamado a desempenhar as funções de engenheiro diplomado. O Chão da Vã não tinha nem capela, nem igreja, nem o sino a dar as horas ao som do hino de Fátima. Falha inadmissível. A construção de um edifício desta envergadura exigia um projeto, uma “planta”, que a junta de freguesia do Juncal tinha de submeter à Câmara de Castelo Branco.
Cá dê um mestre arquiteto de alto gabarito para trabalho de tamanha responsabilidade? Não havia, mas a junta convidou um ótimo “regente de engenharia”, que era eu. Com razão, eu andava no 5º ano do liceu, tinha uma régua, um esquadro, um tira linhas e habilitações muito superiores às das regentes escolares, preenchia todos os requisitos.
Somos um país de génio: “se não tens cão, caças com gato”. É a verdadeira afirmação do génio luso, que o ME está a aplicar aos professores. Com uma dificuldade: os professores não são propriamente animais domésticos, mas mordem e arranham que se desunham.
A Câmara aprovou o projeto, a igreja fez-se e até hoje não caiu. Mestre Afonso Domingues, lembram-se, o arquiteto cego que projetou a Abóbada do Mosteiro da Batalha, como reza a linda narrativa de Alexandre Herculano, foi aqui substituído por outro Afonso, nem mestre, nem arquiteto, nem talento, nem coragem de dormir sob o teto da obra acabada de construir, mas tinha régua e esquadro, o suficiente para ser regente. Os regentes vão ser a salvação da escola. Ensinam de pernas para o ar? Sim, mas fica tudo mais barato e equilibram as Finanças. Como diria Madame de Pompadour, depois de mim, o dilúvio!
Diário As Beiras. 2023.02.16
1 comentário
Não concordo com a visão do Professor Salazar exposta pelo autor deste texto. Não creio que tenham sido essas as motivações na criação da figura das/os regentes escolares. No entanto, de há muito que aviso: o objectivo do Partido Socialista e seus cúmplices é colocar um boy/girl no lugar de cada professor a sério. E o currículo passará a ser o wokismo da moda e pouco mais. Não é preciso ter imaginação fértil para fazer esta previsão. Basta olhar para os Estados azuis dos EEUU.