O ruído e a verdade – Santana Castilho

 

1. “É fundamental que o Presidente da República, que deve ser o principal defensor da nossa Constituição, diga de uma vez por todas qual a sua posição clara sobre os ataques que têm degradado a escola pública e o atentado ao direito à greve”, desafiou André Pestana. O Presidente da República, que fala sobre tudo a todo o tempo e até “demite” ministros via comentário político, afirmou desta feita não querer intrometer-se no diálogo entre Governo e professores, para não introduzir ruído no processo. Mas Isabel Alçada falou por ele, numa altura em que devia ficar calada. É ouvi-la na entrevista que concedeu à RTP, entre as duas audiências sindicais. Tomou partido na contenda, louvou o ministro e o Governo e diabolizou os sindicatos. Teceu loas aos países onde não há greves e teve o topete de elogiar o seu próprio talento negocial quando, com a Fenprof, foi protagonista do acordo de 2010, que tanto contribuiu para a desgraça em que os professores foram caindo. Não haveria na casa civil do Presidente um mediador mais prudente?
2. O Colégio Arbitral, que não Tribunal Arbitral, como reverencialmente tantos lhe chamam, é um órgão acolitado numa repartição do Governo. Funcionou como parte interessada, a coberto de um falso manto de competência técnico-jurídica. Como entender que o representante de um sindicato, que recusou desde o primeiro momento serviços mínimos, votasse ao lado do patrão, traindo os trabalhadores? Esta subversão do direito de representação de uma das partes em conflito e esta unanimidade de pacotilha são a miserável exibição do estado para que caminha a nossa democracia e a ética que a guia.
António Costa ficará para a História como aquele que, em sete anos de governo, recorreu mais vezes a mecanismos de excepção para impedir greves do que todos os outros, nos restantes 42 da nossa democracia. É mestre em serviços mínimos e requisições civis, talhadas para servir os seus interesses políticos e os interesses do patronato, que atestam bem a qualidade do socialismo que defende e a sua aversão ao diálogo e à negociação par resolver conflitos laborais.
3. A comunicação social fala profusamente das rondas de negociação com os sindicatos. A opinião pública conhece bem as reivindicações dos professores. Mas desconhece a natureza de negociações flácidas, cujo prolongamento é favorável ao Governo, que aposta em cansar os docentes. Sabe o leitor que assuntos o Ministério da Educação impôs, até agora, para serem negociados nas quatro rondas já havidas? Em digo-lhe: regime jurídico de recrutamento, contagem do tempo de serviço prestado em creches, valorização dos doutorados para acesso aos 5º e 7º escalões e concursos extraordinários para duas escolas de ensino artístico. Falta tudo o resto, que é o mais importante e que ainda não foi objecto de qualquer negociação: contagem de todo o tempo de serviço prestado, salários, quotas de acesso aos 5º e 7º escalões da carreira, sucata burocrática, mobilidade por doença, etc.
4. Dados recentes revelaram que os professores só conseguem entrar na carreira aos 46 anos de idade e depois de 16 de trabalho precário. O Ministério da Educação anunciou que ia permitir que todos os que completem 1095 dias de serviço a tempo integral entrem na carreira. Mas não disse que o fará, não por sua vontade, mas por imposição da Comissão Europeia, sob ameaça de Portugal ser levado ao Tribunal Europeu de Justiça, por incumprimento de uma antiga directiva da Comissão. Mesmo assim, não resistiu a mais uma artimanha, para tornar perene a iniquidade: no momento do concurso, os docentes terão de estar contratados em horário completo. A consequência pode ser esta:
O professor A tem cinco mil dias de tempo de serviço, mas no momento do concurso não tem horário completo. O professor B tem metade desse tempo e horário completo. A é mais graduado que B. No entanto, B adquire vínculo e A continua precário.
5. Foi atentatório ao mais elementar bom senso que, em pleno litígio, tenham saído anúncios de uma empresa contratada pela Direcção-Geral de Estabelecimentos Escolares para recrutar médicos que, em Fevereiro, irão fiscalizar baixas por gravidez de risco. Está aqui bem evidente a sanha persecutória e a inabilidade política do um ministro incendiário, manifestamente incapaz de contribuir para a resolução dos problemas da Educação.
In “Público” de 1.2.23

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5 comentários

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    • BI 23/35 on 1 de Fevereiro de 2023 at 15:10
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    O PR está demasiado ocupado para dar uma atenção imparcial aos professores. Desgasta a imagem do cargo institucional e o seu sucessor terá muitas dificuldades m recuperar essa dignidade.

    • Mic on 1 de Fevereiro de 2023 at 16:02
    • Responder

    – “(…) sucata burocrática,(…)” – uma real e excelente expressão!

    – O “etc” bem que pode ainda querer dizer :

    a) perigoso e escandaloso facilitismo na avaliação de finais de período/ano letivo;
    b) um regime de assiduidade que, na prática e muitas vezes, branqueia a infração no final do ano letivo;
    c) a necessidade de que a violência exercida sobre o professores, em contexto escolar, seja considerada crime público.

    • Luluzinha! on 1 de Fevereiro de 2023 at 16:23
    • Responder

    Retrato excelente da realidade, numa redação irrepreensível, uma vez mais! Parabéns,

    • Prov Cau on 1 de Fevereiro de 2023 at 16:28
    • Responder

    Continuo a dizer que ter entregue uma Providência Cautelar contra os serviços mínimos, era melhor que um simples recurso, que quando houver decisão, a ilegalidade já vingou Há muito. Quanto a esse perseguidor de camaras de Televisão que atualmente ocupa Belém, conheço-o de outros Carnavais em termos de apoio aos Professores, e não conto com ele.

    • Cata-vento on 1 de Fevereiro de 2023 at 18:40
    • Responder

    Já viram que até o cata-vento mediático do Marcelo anda a tentar impor limites à Greve, “avisando” que a classe docente pode “perder o apoio da opinião pública” se prolongar a greve, o que é uma maneira de dizer, “tratem mas é de aceitar as migalhas que vos poem na mão e regressem mas é ao trabalho”?

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